Malu Magalhães Sanches entrevista a Jorge Mario Jáuregui
 

Transcrição da entrevista realizada pela autora com o arquiteto Jorge Mario Jáuregui em seu escritório, Atelier Metropolitano, na cidade do Rio de Janeiro no dia 12/12/2019.

Observação:
Na ocasião dessa entrevista, utilizamos as seguintes nomenclaturas para designar os diagramas. As correspondências são:
Diagramas de leitura = diagramas formais/ territorializados
Diagramas exploratórios = diagramas informais/ desterritorializados
Diagramas de síntese = diagramas formais/ reterritorializados

Na qualificação de mestrado, que realizei no mês de setembro, foram entregues algumas análises dos diagramas gráficos. Gostaria de te contar um pouco sobre elas, para podermos conversar, principalmente, sobre como os diagramas podem ajudar no processo de projeto.
Selecionei os diagramas feitos para apreender o espaço do complexo de Manguinhos, pois havia uma grande quantidade e diversidade de diagramas. A partir daí realizei uma classificação por grupos, segundo o que você havia me contado sobre o processo... sobre qual tipo de diagrama surgiria primeiro e qual surgiria depois. Gostaria de reforçar que essa classificação cronológica por grupos foi apenas uma forma de sistematizar os diagramas. Os grupos são: os diagramas de leitura, os diagramas exploratórios e os diagramas de síntese.


Vamos chamar esse último (diagramas de síntese) de ideograma. Porque a diferença entre diagrama e ideograma é o maior nível de abstração.


Mas você acha que os diagramas de síntese são mais abstratos que esses os exploratórios.


Sim. Neste diagrama exploratório eu ainda vejo as comunidades. Eu trabalho a partir de Paul Klee considerando o ponto, a linha e o plano. Então aqui tenho linhas, tenho superfície e tenho alguns pontos. Este é outra coisa, diagrama de síntese, já são mais ideogramas. É o núcleo da ideia, é o maior nível de abstração. Aqui eu não vejo o lugar, digamos assim; estou representando um esquema do lugar. Aqui eu tenho referências à realidade (diagramas exploratórios), aqui (diagramas de síntese) é um nível de abstração muito alto, no qual a realidade aparece só aludida.


Certo, e se você me permite mostrar, a partir da classificação dos diagramas em grupos, realizei a análise por intermédio de 6 pistas conceituais que retirei da filosofia de Deleuze e Guattari. Retirei os conceitos da filosofia para poder analisar o gráfico, pois não encontrei na literatura instrumentos para poder analisar especificamente o diagrama gráfico arquitetônico.


Você falou de Deleuze. Você leu aquele livro dele sobre pintura?


Sim! Pintura o conceito de diagrama? Sim! As pistas conceituais eu retirei de “Mil Platôs” e as outras 2 retirei desse livro, “Pintura o conceito de diagrama”.


Cada uma destas pistas é composta por um par conceitual. Gostaria de reforçar a ideia de que esses conceitos trabalham em oposição. Sendo assim, um polo das pistas corresponderia à formalidade, às ideias que já estão formalizadas na mente, e o outro polo à emergência da informalidade, ao que poderia fazer emergir como novos pensamentos. Então, com base nas 6 pistas que oscilariam entre o formal e o informal, analisei quais traços ou características gráficas tinham a possibilidade de manifestar o informal.


Você faz referência no seu trabalho a esses conceitos de formal e informal. Estes conceitos estão sempre em discussão, em revisão. Tem autores, por exemplo, que dizem que não se pode falar de informal, que criticam o conceito de informal.


Eu defendo plenamente esse conceito, essa polaridade de formal e informal, porque vivo em uma cidade que me mostra isso. Tem uma cidade onde eu ando dentro da lei, dentro da formalidade da lei. E tem uma parte da cidade onde eu ando fora da lei, claramente, ou seja, não tem controle do Estado, não tem presença do Estado. Para mim não existe na favela a configuração do espaço público, existe apenas o que é coletivo, e este tem uma definição, uma configuração, uma origem, não em um traçado ou na lei, o que caracteriza exatamente o informal. O informal está muito relacionado à questão da necessidade, enquanto o formal está relacionado a padrões abstratos. Por exemplo, a lei de índias na cultura ibero espanhola, a imposição de um traçado para definir a cidade. Pelo lado português não, como sabemos, os portugueses não seguiam tanto os traçados geométricos, mas buscavam uma adaptação ao lugar, à topografia sobretudo. E eles implantaram muitas vezes em lugares bem pouco clássicos digamos; claramente, lugares anticlássicos, lugares de topografia difícil, de configuração complexa, de conflito entre natureza, topografia, e borda de mar ou rios. Ou seja, são duas implantações bem diferentes que se derivaram da matriz ibérica, por um lado a Espanha e por outro Portugal.


Vou mostrar as análises gráficas. Eu vou falando o que fui encontrando, e você fica livre para comentar. Eu fiz as análises a partir dos conceitos, das pistas, tentando ver algum tipo de aplicação quando eu olhava para os desenhos. Fiz também sobreposições dos diagramas um com os outros, para eu poder relacioná-los mais facilmente, tentei coloca-los em uma mesma escala aproximada.
Em relação à pista da modulação em oposição à codificação, que retirei do livro Pintura El Concepto de Diagrama, eu observei que estes diagramas, que seriam os diagramas de leitura, segundo a classificação que adotei, funcionam muito mais por códigos gráficos e códigos escritos. Por exemplo, eu consigo ver claramente o que são os traçados da rua, porque repete a forma da linha da rua...  


Então você fala “repete a forma”, sim. Eu diria também que toma a estrutura do lugar, as marcas fortes do lugar, e as ressignifica, no sentido de pôr mais em evidência aquilo que faz à estrutura, aquilo que constitui a lógica do lugar, que é própria desse lugar, que não é repetível, que não é uma generalização. Sempre os croquis são muito particularizados, são específicos de um lugar e de uma situação concreta.


Até esses de leitura, mesmo com vários códigos escritos e gráficos, você acha que ainda tem essa singularidade muito marcante?


Sim. Sem dúvida.

Ainda sobre essa pista, de acordo com os conceitos da filosofia, a modulação seria o informal. Então, o oposto, que é código, é o que a gente consegue reconhecer a forma, seja a forma do contorno, seja a forma do território. Entendendo forma como aquilo que parte do reconhecível. Assim, tudo que conseguimos ver e reconhecer, como as letras, as palavras, e os contornos formais, seriam um tipo de código gráfico ou escrito. Já a pista que aponta para o polo informal trata de uma modulação dos grafismos em função do que está sendo transmitido. O que achei interessante na análise, é que nesse daqui (diagrama exploratório), você tem muito mais uma modulação da cor, dos traços, das texturas...

Exatamente. Aqui vemos o grafismo ou a “textura”, que você fala... a singularidade deste desenho. Enquanto aqui (diagrama de leitura) é mais um mapa, está mais associado a um mapa. Este diagrama exploratório já não é mapa. A textura e o traço implicam um afastamento do mapa. Há um distanciamento do mapa.

Mapa no sentido de ser alguma coisa que você reconhece?

Sim.

E este já está um nível a mais abstrato?

Sim. Inclusive, abstrato e com autonomia estética. Buscando sempre a beleza, porque no fundo de tudo isso, sempre estamos rondando e discutindo uma ideia de beleza, que é finalmente o que eu chamo de o “direito à beleza” que o cidadão tem. O cidadão, sobretudo aquele que não pode pagar pelo serviço de um arquiteto privado, mas recorre ao poder público para ter acesso à beleza, nesse sentido.

Você acredita que até no desenho existe essa autonomia estética, essa busca por algo...

Por um nível de beleza. Tem no esforço de graficar, uma intenção de beleza.

Certo. E você acredita que quando faz os traços, as manchas com as suas gradações, por exemplo... quando você vai modulando o que você está vendo, já vai ficando diferente a forma de enxergar o lugar?

Sim, você vai como que modelando o lugar através do desenho. Vai registrando, o que finalmente tem a ver com expressão. Porque o desenho tem a ver com expressão, e o diagrama é um desenho.

Quando observamos o diagrama exploratório em relação ao sintético, os ideogramas, como você chama, percebemos que eles voltam a obedecer um código. Códigos óticos, e não mais modulam linhas e cores.

Sim, é verdade. É verdade que existe uma ida e volta. Entre partir de algo concreto para a abstração, e voltar da abstração para o concreto.

Passando para a pista dimensão intensiva em oposição à dimensão extensiva. Me parece que aqui (diagrama exploratório) cada traço tem uma unidade que não corresponde a nada métrico. É mais intensivo.

Sim. Não é métrico.

E, nesses outros (diagrama de síntese), parece que o intensivo está nos círculos da centralidade, certo?

Sim, você leu bem!

Então podemos dizer que os diagramas exploratórios estão pendendo mais para o polo informal, para liberar a mente para novas relações. E o digrama de síntese já é mais misto, apresentando mais formalidades. Como você disse vai para a abstração e volta para o concreto...

Isso, perfeito.

Passando para outra pista, que seria o espaço liso em oposição ao espaço estriado – tem uma iniciação científica que ajuda na pesquisa com a parte gráfica, e ela dividiu esse diagrama exploratório em várias camadas. E o que me chama mais atenção, é que as camadas do desenho interferem umas nas outras, então o próprio espaço do desenho muda de direção constantemente. Diferente deste outro diagrama sintético que consigo ver cada linha com clareza, que existe uma clara separação, no diagrama exploratório as camadas vão se mesclando aos poucos. Você acha que as junções constantes, as múltiplas camadas que vão se sobrepondo no desenho, acaba por interferir na ideia?

Sim, porque finalmente isso tem a ver com a ideia de unidade, ou seja, o que estabelece a unidade em um desenho. Tem a ver com continuidade, com proximidade, com sobreposições, com conexões entre partes. E na cidade, no urbano, sempre vamos falar de percursos, conexões, possibilidades, de dobraduras e desdobramentos e trajetórias. Eu vejo esse croqui e vejo uma variedade de possíveis trajetórias aqui dentro.

Tem uma potência múltipla, digamos assim? E para fazer os próprios desenhos, você faz as linhas e depois texturas, como acontece?
Sim, sempre terá isso. A referência que eu faço à Paul Klee, de ponto, linha e superfície, está sempre presente. Porque quando eu desenho, seja para o projeto de um objeto ou de um fragmento urbano, sempre o ponto, a linha e o plano estão fazendo parte da lógica compositiva. Então, sempre há um deslizamento entre o ponto, a linha e o plano, que vai revelando uma lógica. Uma lógica que está no lugar e o digrama tenta traduzir, ler, entender e registrar.

Nesse aqui, diagrama de leitura, é visível como a linha está submedida ao ponto, e nesse (diagramas exploratórios) as linhas não passam por lugares fixos, mas perambulam, tem mais liberdade. Já nesse outro (diagrama de síntese) existe um misto, porque embora existam algumas linhas que passem sobre os pontos, existem pontas de algumas linhas que estão soltas, ganhando uma certa liberdade.

Isso que você chama de ponta, para mim, são as aberturas para isso que é sempre maior, aquilo que tem uma dimensão quase inapreensível, que é o urbano como um todo. O magma do urbano contemporâneo. Sobretudo das megacidades. Então sim, estas pontas abrem à deriva.

Nos diagramas de leitura, parece que a mão está obedecendo o olho, uma linha tenta passar por cima da outra, reforçar os traços... passar por cima do mesmo lugar. O que configuraria um espaço estriado...
Sim, é mais limitado, mais controlado. Exatamente.

Passando para a próxima pista... que seria o manual, em oposição ao visual. O manual faz referência a mão que se liberta do olho, por isso a linha é mais gestual. Já o visual, faz referência a quando a mão ainda está seguindo o olho... porque está buscando o reconhecimento de algo. Olhando para os diagramas de leitura, percebo como as linhas são produtos de pequenos escapes, pois estão ainda domesticadas pela visão. Já no exploratório, o gesto é bem marcante, aparecem linhas menos precisas, produzindo espessura diferentes, manchas...

Sim. Claramente este (digrama exploratório) se parece mais com a pintura. Com o gesto do pintor. Porque, na arquitetura, sempre se está flertando com a pintura, entendida também como objeto estético, objeto artístico, gesto de arte também, que emparenta a atividade do pintor com a atividade do arquiteto. Por isso tem tantos arquitetos pintores, a começar por Le Corbusier, entre muitos outros.

A última pista é rizomático em oposição ao arborescente. Para investigar essa pista fiz sobreposições de dois em dois diagramas, dos seis diagramas existentes, para tentar aumentar a legibilidade; ou seja, a ideia era tentar ver como eles se conectavam. Sei que não é um processo linear, e que existem interferências externas... Mas entendendo que não existe uma linearidade, tentei estabelecer conexões entre os diagramas.

Sim, não tem uma linearidade, mas tem uma reflexão permanente. Um pensamento de ida e volta, entre o real e o abstrato. Entre a intenção e a referência concreta que o lugar nos dá.

Partindo dos diagramas de leitura percebemos, como você disse, eles lembram um mapa, mas ainda decalcam algumas coisas, tem muita herança.
Sim, herança do mapa.

Depois, quando observamos os diagramas exploratórios, percebemos que existe um distanciamento dos diagramas de leitura. O modo como eles se conectam já é diferente, mais rizomático, sem tantas copias ou heranças semelhantes.

Sim.

E quando observamos os diagramas sintéticos, conseguimos novamente ver a repetição de alguns elementos que já apareciam anteriormente no exploratório. Especificamente, me chamou a atenção como conseguimos ver linhas que se correspondem em extensão, por exemplo. Então enquanto os exploratórios apresentam uma maior liberdade, um modo de conexão diferente em relação aos de leitura.... Os diagramas sintéticos se conectam com os exploratórios herdando ainda muitas coisas. Em resumo, poderíamos dizer que os exploratórios se conectam com os de leitura de modos mais rizomáticos, enquanto os sintéticos se conectam com os exploratórios de modo mais arborescente...

Esses comentários seus estão registrados em algum lugar?

Sim! Eu apresentei para a banca... não sei o que você está achando...

Sim, é muito complexo o tema, e ficou um trabalho muito bom de leitura. Tanto que eu vou colocar no meu site com o seu nome, como complemento do que eu já escrevi sobre diagramas.  
Vai agregar camadas de leitura.

E você tem alguma observação em relação as análises?
Há um livro interessante, chamado Disegno, desenho, desígnio, de 2007 (de Edith Derdyk).

Ah, legal! Este não conheço, vou procurar. E complementando, existe mais uma pista, que anão apresentei aqui, que é a cartografia e a decalcomania. Interpreto essa pista como uma investigação sobre o ato de ir ao local... tentar ficar exposto aos afetos. E me lembro que eu sempre vejo nos seus textos como você expõe a questão de ser um corpo aberto...

Sim. Deixar se atravessar pelas questões e pelos fluxos, ou seja, o que Deleuze denomina de “afetos”. Como você é afetado e como você afeta a realidade.

Então considerei como sendo uma prática cartográfica a tentativa de fazer um mapa aberto, e que se oporia a tentativa de fazer apenas uma cópia da realidade. Bom, foram essas as pistas que utilizei, e estão todas escritas...
Uma coisa que me deixa curiosa é que, tendo em vista a fala de Deleuze, de que as formas são apenas sintomas de forças, quando olhamos o diagrama exploratório em contraposição ao conjunto, me aparece que neste diagrama as formas estão muito deformadas, por todos os lugares, sendo trabalhadas, moduladas e etc. E me parece que existe uma ordem, que vai se constituindo no próprio ato de desenhar, e cria uma imagem que salta aos olhos e passa a atingir a sensação háptica, uma leitura quase manual do desenho.

Sim, está claro que a manualidade está muito evidente e nesse sentido de defender a mão como o que guia. É a mão que constrói. A mão que configura. E você falava de sintoma de força, sim, está claro que é sintoma de forças. Há forças atravessando o território, que o desenho busca interpretar, traduzir, registrar.

E você vê alguma força específica? Alguma que você consegue identificar, que te afetou...

Sim, claramente. O movimento o rio, foi um movimento muito forte, e o movimento das autopistas e da linha do trem. Essas linhas de força justamente, que atravessam o território. O rio é uma linha de força, é um permanente fluxo. A autopista também, é um lugar permanente de movimento, igual que a ferrovia. Então, é este movimento que atravessa o território que o desenho busca emular, busca de alguma forma fazer o mesmo na gráfica do desenho. Sempre com a dificuldade de estarmos trabalhando na bidimensionalidade... como o bidimensional pode aludir ao movimento, e inclusive os relevos do território. Então, sim, essa tensão está sempre presente na origem de um desenho. Você está olhando o lugar, tentando entender os fluxos e tentando traduzir isso numa estrutura, uma lógica, em um desenho que obedeça à uma lógica, que seja capaz de traduzir uma lógica de um lugar específico. Porque a arquitetura e o urbanismo têm a ver sempre com lugares específicos. Não estamos projetando arquiteturas ou cidades genéricas, estamos sempre e, sobretudo depois da modernidade, buscando derivar da lógica do lugar uma estrutura, a estrutura que corresponde a este lugar em particular e a nenhum outro. E desde essa lógica do lugar, ser capaz de repensar o lugar, porque o objetivo do desenho é, finalmente, poder resinificar o lugar.

Neste diagrama exploratório, essas manchas aqui identifiquei como sendo as comunidades e as centralidades, e aqui tem uma série de linhas circulares ...

São áreas de influência, os entornos.

E essas linhas circulares que estão espalhadas pelo desenho, são uma tentativa de organização?

Sim, de dar um caráter orgânico, de fluidez. Porque essas formas para mim falam do fluido. E o fluido, nesse lugar, tem a ver com fluido do rio, dos canais, e do trânsito, que é brutal nesses lugares. É um lugar de passagem, permanente movimento, atravessamento.

Eu vou lá hoje, vou poder verificar isso.  

E com quem você vai?

Com uma arquiteta que mora na comunidade. Vamos nos encontrar na Estação.
Ótimo. Você sabe que as obras do poder público, da prefeitura e mesmo as do Estado, estão abandonadas. Ou seja, o poder público, aqui no Brasil, faz, mas depois não gosta de manter, de conservar, de investir na conservação, e isso é algo muito negativo. Porque uma vez falando com Jean Nouvel, quando ele veio aqui para fazer o projeto do museu no amanhã, que depois ficou com Calatrava... Nouvel me fez um comentário. Ele me falava que na França ocorre o mesmo. Ou seja, se faz um projeto, se constrói e se depois de 5 anos se não tiver manutenção, começa a desaparecer, é como se não tivesse feito nada. Aqui hoje, para mim, estamos em uma situação na qual deveríamos fazer uma arqueologia do que foi feito, tal o nível de desaparecimento, de destruição que as coisas sofrem, porque o poder público não dá o exemplo, não mostra uma atitude responsável pelo que faz, deixa deteriorar, deixa sem controle, deixa sem interlocução com as populações, e isso acaba revertendo, como se voltasse a uma situação pré-Favela Bairro, pré-projeto. Situação na qual as pessoas se viram como podem, sem nenhuma presença do poder público, sem nenhuma atitude cívica, de responsabilidade em relação ao que é de todos. Uma das coisas que um projeto faz é estabelecer a separação entre o público e o privado. Na favela tudo é privado, não há o domínio público. A dimensão pública é estabelecida pelo projeto de urbanização, delimitando o que é de cada um e o que é de todos, ou seja, quando terminamos um projeto de urbanização temos que desenhar uma planta, o “as built”. Então o as built é encaminhado para o poder público para fazer a delimitação do público e do privado. A partir deste momento, se instaura a dimensão do público na favela. Até esse momento eu diria que é só o coletivo, ou seja, que é mais privado e comunitário. Sendo que o comunitário tem limites fluidos, eu posso invadir o espaço comum porque não tem uma legislação que me impeça de avançar sobre a rua, construir sem seguir padrões de habitabilidade, de iluminação, de ventilação e de acessibilidade adequados. Então, uma questão importante, quando há uma ausência de poder público que não se responsabiliza pelo que ele mesmo fez ou que mandou fazer, há uma situação de anarquia, uma situação de falta de referências para pensar a vida em comum. Esse é só um comentário geral, porque você vai chegar em Manguinhos e vai encontrar tudo destruído lá. Salvo a biblioteca que continua funcionando. O resto, o que eram os espaços públicos, estão totalmente invadidos precisamente por falta da presença do poder público.

E nós estávamos falando de percepções, dos fluxos, da água. Teria alguma percepção que você tem agora, mas não teve na época e que você acha que poderia ter ajudado nessa questão da degradação, ou em outras questões...?

Sim, claro. O tempo todo penso nisso. E é verdade que não encontrei interlocução com o poder público para falar a respeito destas coisas. A minha interlocução é mais com as comunidades, que sempre, quando vou ao lugar, me falam sobre seus problemas como falta de controle e manutenção, e falta de controle da conduta coletiva no lugar. Eu penso e escrevo a respeito de como poderia ou deveria ser hoje uma reaproximação com esses lugares, partindo do já feito, mas digamos, indicando os rumos para que não volte a acontecer o mesmo nas novas intervenções. No Rio de Janeiro temos 750 favelas, mais ou menos, e tem-se atuado sobre umas 300, então falta muito mais da metade para ser feito. Portanto o trabalho é enorme. É enorme, mas é preciso aprender do feito, do acumulado, dos saberes tanto técnicos, das equipes multidisciplinares que foram constituídas, quanto do feedback da população. Uma tarefa que o poder público também nunca faz é avaliar o feito e extrair daí certos princípios para reencaminhar as coisas.

Os Pousos, por exemplo, em teoria teriam essa função. Função de gerir 151 os conflitos pós obra. Uma vez que se terminam as obras e que os construtores e os arquitetos se retiram, a prefeitura buscava deixar instalado ali, um núcleo de diálogo, representado pelos agentes do poder público, arquitetos, engenheiros, assistentes sociais e os representantes comunitários, que se reuniriam nesse Pouso e encaminhariam as questões suscitadas pós obra ao poder público para tomar as medidas que fossem necessárias. Isso nunca funcionou, houve um momento pequeno, um lapso de tempo pequeno, no qual o Pouso era atuante, um pouco antes da instalação das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) e um tempo junto com as UPPs. Mas finalmente, tanto as UPPs quanto os Pousos foram perdendo a relevância, ou mesmo foram abandonados pelo poder público e, hoje, estamos em um vazio, de novo, em um vazio de presença do poder público no lugar que precisa ser reestabelecido, que precisa ser retomado e repensado. Nisso, há várias indicações para como retomar as coisas hoje, no estado em que estão, no estado de abandono que estão, mas sempre partindo do que já se aprendeu, do que não deveríamos repetir e do que deveríamos corrigir.

E olhando agora para esse conjunto de diagramas gráficos, você acha que teria alguma informação, a partir de uma nova percepção, que você gostaria de diagramar?

Bom, voltando ao lugar hoje, acho que se você for ao Alemão, Maguinhos, Rocinha, Rio das Pedras, as grandes favelas de que estou falando, que são as mais complexas, hoje, claramente, se eu tivesse que voltar por razões projetuais, para retomar os trabalhos, retomaria a partir do estado atual das coisas. O que eu li no momento inicial, eu confrontaria com a situação atual, com o que sobreviveu, com o que as pessoas modificaram de sua conduta a partir das obras, antes da deterioração, e traçaria a partir daí novos objetivos. Isso, para mim, tem a ver com ecologia existencial, que é um conceito que implica a necessidade de reorientar completamente as condutas tanto individuais quanto coletivas. Então tem que haver junto com o trabalho de projeto urbano, um trabalho social, em paralelo, junto, ao mesmo tempo, inclusive era o que tinha esboçado para o Morar Carioca. Far-se-iam dois contratos em paralelo, um de urbanismo e o outro de trabalho social dialogando, como forma de trabalhar ao mesmo tempo a reconfiguração física do lugar, mas também a reconfiguração dos hábitos de uso dos lugares. Acho que esse é um tema que tem a ver com uma questão didática de como ensinar, ou ré ensinar, reaprender a conviver, a partir de que os lugres são revalorizados, retomados, relidos, no sentido de que o físico e social venham cada vez mais, e sempre, a coincidir. Porque, normalmente, quando o poder público solicita o projeto prioriza muito o aspecto físico e pouco o aspecto social. Por isso, trabalhar em paralelo o urbanismo e o trabalho social, para mim é um caminho que devemos seguir, e nesse sentido, os desenhos, os registros dos lugares, seguramente vão sofrer alterações, reorientações.

E você sente que nesses registros você está diagramando também o social, que extrapola para além do físico?

Sim, porque eu leio as centralidades. E as centralidades são as formas como o território é ocupado, usado, praticado. Vamos usar essa palavra, território praticado. Então o território praticado são aquelas marcas que as pessoas que habitam o lugar imprimem ao próprio lugar e um ponto de referência fundamental; essas trajetórias, esses usos, essas ênfases em determinados lugares, em uns determinados pontos, são para o arquiteto um referente importante de projeto.

Então essas considerações sociais podemos considerar que estão incluídas nesses registros?

Sim, sempre. Porque os diagramas se fazem como registros gráficos, mas a partir e em paralelo com os diálogos com as pessoas que moram do lugar. Não é um desenho que faço independente dos diálogos, os diálogos informam o desenho também.  
: um estudo dos registros de Jorge Mario Jáuregui DIAGRAMA E INFORMALIDADE 0

Eu tenho aqui alguns desenhos do projeto de Manguinhos, e me parece que uma das coisas mais importantes era a elevação da linha do trem...
Sim, porque Manguinhos era, claramente, um complexo de 11 favelas divididas pela linha do trem. Era um corte, como se tivesse um foço entre os lados da comunidade, então ao elevar a linha do trem e suspender o que dividia... passou a ter uma conectividade direta para o pedestre por baixo, que era a forma mais evidente de integrar o que estava dividido.

Certo, e podemos perceber que desde o diagrama de leitura até o de síntese, sempre está presente a linha do trem e os cursos d’água. Foi a partir de algum desses desenhos que você teve essa ideia de levantar a linha do trem?

Existe uma interação. Como se constrói uma ideia? Indo aos lugares, claro, como sempre os lugares é que sugerem a possibilidade do projeto, mas quando você registra, quando você desenha o lugar, o próprio desenho abre para outras possibilidades de imaginação. O lugar é um, e o desenho é outra fonte, também, para imaginar, para repensar, reinterpretar, para finalmente buscar a ressignificação do lugar. Porque a ambição de todo o projeto é ressignificar os lugares. Quando você chega tem um significado, e depois do projeto vai passar a ter um significado diferente.

E a questão dessa linha...

Era chamada, e não por acaso, de faixa de gaza. Ou seja, esse nome sempre me chamou muita atenção, porque faixa de gaza é a pior coisa que a gente pode imaginar em termos de partição.

A avenida da Morte, a Leopoldo Bulhões?

Exatamente. As pessoas falavam que quando caminhavam do lado do muro eram como alvos móveis.

E isso era uma coisa que você via como característica forte do local, e por isso esse eixo de via está muito presente em todos os diagramas? E a gente pode ver nesse diagrama exploratório que existem linhas transversais que passam por cima da linha do trem...

Sim, uma atravessabilidade do lugar que era justo o oposto do atravessável, antes do projeto.

E hoje você acha que o projeto cumpriu a função que você esperava?

Não, houve uma disrupção total. Não terminaram a obra. Quando o piso de pedestre estava sendo terminado, as pessoas já estavam indo estacionar carros em um piso que era para pedestre, para um peso diferente. E já aí o poder público se mostrava indiferente, não se interessava, não tinha nenhum fiscal para orientar novos comportamentos, por exemplo. Então desde o início vi que isso ia ser gravíssimo. Não se terminou de construir a nova fachada urbana, de um dos lados, com as novas edificações de realojamento das pessoas, que ia configurar essa nova marca do lugar. De um lado a Rambla e de outro os novos edifícios com responsabilidade urbana. E o próprio passeio como um lugar de circulação e, também, de permanência. Por isso aqui havia quiosques, bancos, equipamentos públicos entre a estação de trem e o centro cívico, que nunca se completou. Então é como um quadro, como uma pintura, se você pega um quadro pela metade, o significado não está configurado antes de ser completado.  

O Centro Cívico é onde fica a biblioteca que você disse que ainda está funcionando, certo?

Sim. Temos também o centro de referência da juventude, que funcionou muito. A casa da mulher, numa edificação dos militares que já existia e que foi reciclada pelo projeto, transformada em Casa da Mulher. A biblioteca, centro de apoio jurídico, com os auditórios e locais para prestação de apoio jurídico para a população do lugar. O edifico da escola reciclado era o edifico do comando militar, foi transformada em escola e foi feito um anexo para equipamentos esportivos... com piscina olímpica, que era sensacional e hoje está tudo abandonado! Além da construção de novas unidades habitacionais, em volta do que os militares deixaram de melhor, que são as árvores de grande porte do lugar. O projeto se originou em volta dessas árvores.

E se olharmos para esses diagramas exploratórios, eles davam uma sugestão de utilização deste lugar?

Sim, já vemos que havia um lugar para ser preenchido. Este espaço que vai ser finalmente o centro cívico. E que está no núcleo da composição.

Mas nos diagramas de leitura, esse espaço está mais para baixo da composição... não tem essa ênfase.

Sim, quando eu fiz essa primeira leitura não tinha percebido ainda a importância que esse lugar poderia ter e teve. Aqui eu estava só pensando nas comunidades. Um registro só das favelas, não do que estava ao lado da favela e que viria a ser fundamental para constituir o nexo entre as duas partes, um centro cívico de escala do complexo e do bairro em volta, porque o centro cívico não era só para a favelas. Aqui no registro, vemos a escola secundária, profissionalizante e biblioteca para todos os bairros ao redor. Então o centro de apoio jurídico, o centro da juventude e as instalações esportivas, etc, tem uma escala que vai muito além da favela.

A elevação da linha e a criação do centro cívico, podemos considerar os elementos principais do projeto, certo?

Sem dúvida, esse foi o coração da intervenção.

E esses dois, de alguma forma, muitas vezes por forças que não controlamos, digamos assim, tiveram esses problemas...

Eu acho que o único que sobrevive hoje é a biblioteca e um pouco desse outro espaço, as unidades (de habitação), por falta de controle e por exigência da lei, que não permitia edificações mistas... a gente sempre quis fazer os térreos comerciais ou transformáveis em comercio pela própria população. A legislação não permite, mas você vai lá e está tudo feito assim, cheio de puxadinho. Porque a lei é cega e as pessoas precisam incluir atividades para produzir renda, nas suas residências.

E foi tentado um acordo para poder fazer comércio no térreo?

O programa minha casa minha vida (MCMV), no qual essas edificações se enquadram, não permite. Diretamente exclui. Então essa é uma das cosias cegas da legislação que claramente não coincidem com a realidade. As pessoas usam seus pavimentos térreos para atividades produtivas e comerciais. E ignorar isso é ir para o fracasso direto.  

E isso é um dos princípios básicos para ter vitalidade, usos de dia e de noite...

Claro, garante vida, muito além do horário das atividades formais públicas, por exemplo, da biblioteca ou do centro de referência da juventude.

Era uma percepção que vocês já tinham tido?

Sim, desde o início. Desde o Favela-Bairro a gente sabe que não pode fazer unidades mono funcionais. O pavimento térreo sempre tem que ser multifuncional, ter comércio, serviços, trabalho. Hoje as pessoas de classe média trabalham em casa com um computador, nas favelas as pessoas trabalham manualmente em suas casas, consertam coisas, todo tipo de aparelho e equipamento que a classe média precisa. E tem comércio também, claro. Então, isso tem que ser, não só permitido, mas estimulado por um programa inteligente de urbanização. Contudo, o poder público é ainda muito lento, a legislação é muito inadequada em relação a dinâmica do bairro popular. Totalmente inadequada.

Então podemos pensar que talvez o poder da arquitetura seja bem limitado...

Claramente, sem dúvida. Pensando o que poderia ser feito em relação ao projeto, por exemplo, terão que ser refeitos todos os pavimentos térreos do conjunto habitacional. Todos! Além de o estado garantir funcionamento do que fez. A última vez que fui à escola, ela estava absolutamente deteriorada e depredada. Uma escola que tinha sido inaugurada, e era de um nível de uma escola de primeiro mundo. Com tudo funcionando, os aparelhos, os equipamentos, os ares condicionados... hoje está tudo deteriorado, a piscina não funciona mais. É um desastre! A gerência do poder público é desastrosa!

E sobre as comunidades que foram realocadas?

Só as que estavam em área de risco. Que estavam em uma condição infra-humana. Essas foram relocadas.

E os edifícios habitacionais deram conta de toda essa demanda?

Sim, e mais ainda. Porque foram construídos para atender também a demandas de outras áreas do entorno.

E hoje todas as edificações habitacionais estão ocupadas?

Sim, todas ocupadas e mal-usadas, digamos assim, sobretudo os pavimentos térreos.

E essas comunidades, essas áreas de risco, você vê correspondência...

Todas essas áreas verdes não foram construídas (apontando para um desenho do projeto), era passeio público, todo arborizado no projeto. Só retiraram as pessoas, mas não fizeram o urbanismo destas áreas.

Na primeira entrevista que eu fiz com você perguntei sobre a questão do diagrama especificamente para trabalhar com a informalidade, e você me contou que era um instrumento que você não utilizava anteriormente, e que quando começou a trabalhar com as favelas, passou a utilizar...

Sim, porque quando trabalhava na cidade formal nunca tinha pensado em diagramas, em registrar as centralidades. Porque no geral, nos lugares formais da cidade, está tudo muito claro, digamos assim, está evidente, o que é central, como as coisas funcionam, quais são as lógicas de ocupação dos lugares. Na favela não, nada é evidente. Você tem que descobrir, porque está coberto. Então, descobrir significa revelar, significa chegar com um olhar “estrangeiro”. Todo arquiteto é um estrangeiro na favela... e tem que aprender a “ver”. Na cidade, acho que a gente está treinado para ver. Porque todo o ensino formal universitário está baseado na cidade formal. E quando a gente vai à favela tem que reaprender a olhar, tem que aprender a ver outra realidade. E a realidade que aparece se revela ao sol, na fotografia e quando desenhamos. Quando tentamos entender a lógica da complexidade, que é exatamente a lógica da favela. Por isso o diagrama, para mim, foi muito importante, descobri o diagrama como meio de comunicação e de expressão.

E esse meio de comunicação, se formos pensar na lógica dos diagramas de leitura, dos exploratórios e dos sintéticas, podemos ver uma trajetória... que parte do formal, da tentativa de fazer mapa, depois começa a explorar as coisas mais informais, para poder voltar à formalidade, já observando as métricas, mas ainda assim com aberturas, como, por exemplo, nas pontas desse diagrama...

Sim, e as pontas se abrem às possibilidades. E aí me lembro sempre de uma frase de Oiticica, ele diz que no Brasil há fios soltos em um campo de possibilidades. Bom, isso são fios soltos em um campo de possibilidades. As possibilidades do projeto.
Eu coloquei várias características nos diagramas a partir de conceitos retirados da teoria. E são conceitos que não foram feitos para analisar desenho de arquitetos, foram conceitos adaptados...

Foi muito interessante o caminho que você fez, porque te levou de uma coisa mais abstrata para tentar entender como funciona em determinados lugares concretos.
Resumindo, a partir dessas várias características, eu detectei que os diagramas exploratórios ressaltam mais as características que pendem para a informalidade. E quando você fala do descobrir, ou do explicar, isso mostra que tem algo implicado e que você precisa desenvolver, explicar. Então me parece que os exploratórios são mais potentes do que os diagramas de leitura ou dos de síntese, esses últimos, embora tenham uma abstração grande, ainda carregam muitos códigos, e recuperam algumas características que já se voltam para a realidade formal.

É verdade, concordo com essa leitura.

Se você quiser fazer mais alguma observação...

Eu acho que você fez uma leitura muito interessante. O trabalho agrega ao que eu já tinha recebido, por exemplo, de Valéria Veras. Você ainda especifica mais a função de um diagrama para um arquiteto no urbanismo. E deixa abertas questões para continuar pensando e projetando.