Favelas
Articulação Urbana no Rio de Janeiro

 

 
 

Podemos identificar quatro modos de intervenção urbana que implicam um posicionamento cultural específico. Um urbanismo defensivo entendido como ações de salvaguarda do patrimônio histórico e natural; um urbanismo de requalificação, que põe o acento na forma física, destinado a "recompor" a cidade através de ações requalificadoras; um urbanismo estratégico, onde as ações se limitam a poucos pontos ou áreas de intervenção, tentando interpretar as forças e as lógicas que transformam o território buscando "canalizá-las" ; e um urbanismo de articulação do físico com o social, que põe a ênfase nos aspectos multiplicadores das ações urbanas tendentes a "costurar" o território da cidade, combatendo a segregação urbanístico-social. Esta concepção busca enfrentar o "déficit de cidade", a não-cidade nos "nichos de pobreza", configurando espaço público e introduzindo serviços, instalações para a geração de trabalho e renda, equipamentos culturais e esportivos, conectando os tecidos formal e informal da cidade. Articula o físico (urbanístico-ambiental-infraestrutural) com o social (cultural-econômico-existencial) e o ecológico (ecologia ambiental, social e do meio ambiente) em duas perspectivas, uma estratégica (Plano Ideal), e outra tática (Plano de Intervenção).

Estes paradigmas de atuação mencionados colocam questões de sentido, validade e congruência, que devem ser manejados desde uma posição ética com competência e rigor instrumental ao se abordar as problemáticas socio-urbanísticas contemporâneas.

De uma maneira geral, podemos dizer que o planejamento urbano busca preparar a cidade para criar possibilidades de "fazer chover" captando recursos da "nuvem da globalização", isto é, tentando capturar investimentos, enquanto paralelamente, os projetos de escala urbana buscam introduzir valências através de intervenções e modificações na infra-estrutura, na composição de uma paisagem esteticamente elaborada e mediante a qualificação dos equipamentos do espaço público. Estes projetos têm por objetivo produzir o que poderíamos chamar de "excitação urbanística", através de uma posta em evidência das qualidades, das potencialidades e do nível de integração desejado para o espaço urbano.

Desde um ponto de vista mais particularizado, podemos ler as intervenções aqui apresentadas, realizadas dentro do programa de urbanização de favelas de Rio de Janeiro denominado Favela-Bairro, como a elaboração de projetos cujo sentido estratégico consiste em quebrar a cisão da "cidade partida" entre o asfalto e o morro, entre formal e informal, mediante a criação e desenho de espaços e âmbitos de uso público, dotados dos atributos da urbanidade (qualificação formal e espacial, equipamentos, serviços e conectividade).

Pensar urbanisticamente a integração das favelas implica conceber a tarefa como parte do Projeto Urbano que envolve uma estratégia de reconquista da cidade visando sua rearticulação. Esta idéia de projeto urbano pressupõe a formulação de uma estratégia espacial (comandada pelos projetos de estruturação urbana) e de uma estratégia social (baseada na mobilização da população para a participação na definição dos programas, na qualificação educacional e laboral, e no acompanhamento de todo o processo), através das quais busca-se tornar as partes excluídas dos benefícios da vida urbana, ambientes favoráveis para o convívio e a inserção social. As áreas de favela abrangem no Rio um terço de sua população, aproximadamente 1.200.000 de pessoas. Projetos especiais (tal como o que recebeu o Veronica Rudge Green Prize da Universidade de Harvard), conjugam todas as escalas e problemas característicos de um meio muito complexo como é aquele de uma megacidade. Estes projetos tratam de criar "pólos de centralidade" capazes de estender o efeito urbano também para as áreas do entorno, conectando e articulando as favelas com os bairros vizinhos.


Vista aérea do Núcleo da Intervenção no Salgueiro
(Ginásio Coberto, campo de futebol, arquibancadas, unidades de relocação, lavanderia comunitária e novo traçado viário)

Assim, lugares constituídos sem nenhum planejamento, mediante as intervenções vão adquirindo uma responsabilidade urbana. Neste sentido podemos falar do "magma" das favelas, isto é, de lugares onde o urbano está "em devir", em processo de se constituir numa nova entidade a partir do cruzamento entre as condições de cada lugar, e o projeto de transformação; entre cultura profissional e cultura popular.

Os projetos de urbanização de favelas envolvem a reestruturação de cada área de intervenção bem como a reformulação das suas relações com o entorno, considerando de forma integrada os aspectos infraestruturais, os problemas de acessibilidade, a incorporação de serviços e equipamentos de caráter cultural e esportivo, a criação de âmbitos para geração de trabalho e renda, incluindo também os aspectos de regularização da situação fundiária e questões normativas referidas a limitação de expansão, normas edilícias e uso e ocupação do solo.

Cada favela urbanizada passa a contar com um regulamento específico ("leizinha") a ser aplicado pelo P.O.U.SO (Posto de Orientação Urbanístico e Social) introduzido em cada comunidade.

Urbanizar favelas implica sobre tudo pensar o urbanismo e a arquitetura na sua função de serviço social capaz de permitir o acesso à cidadania, ao tornar possível que a melhoria da qualidade dos espaços da vida cotidiana influencie positivamente na autoestima do cidadão. Neste sentido é de grande relevância a criação de um espaço público articulador, conectivo, capaz de reforçar as centralidades (ou germes de centralidade) existentes e propor novos centros de convivência, com valor simbólico, estruturados com base nas atividades e formas de convívio e intercâmbio que as diversas comunidades apresentam, buscando potencializá-los e aumentar sua escala.

Mas uma condição prévia ao projeto é saber "perguntar bem", sobre as condições do lugar e do contexto da área de intervenção, tanto em termos históricos, técnicos, econômicos e do processo de configuração física, quanto das relações sociais, culturais e produtivas estabelecidas. Os lugares devem ser "bem perguntados".

Produto da experiência de intervenções em mais de vinte favelas do Rio de Janeiro ao longo de cinco anos, com populações que variam de 850 famílias (caso de Fernão Cardin) a 12.000 famílias (caso de Rio das Pedras atualmente em execução), a formulação do conceito de Partido Urbanístico constitui a estrutura nodal que permite estabelecer um marco de coerência para as atuações, envolvendo uma visão inter e trans-disciplinar dos problemas a serem equacionados. Diferentemente do urbanismo antigo, que era o resultado da soma das participações superpostas de diversos especialistas, agora trabalha-se com uma visão integradora comandada desde o projeto urbano. Cada favela é uma peça de grande complexidade, por isso a metodologia específica elaborada ao longo destes anos de atuação configura uma abordagem em leque das diferentes questões a serem resolvidas, mediante a focalização rigorosa de cada aspecto componente dos problemas, mantendo uma visão de conjunto.


Praça de Rio das Pedras com edifícios de relocação ao fundo

O objetivo é introduzir uma "semente de urbanidade" no coração de cada comunidade, capaz de "contaminar" positivamente o tecido físico e social. Isto é feito a partir da identificação das carências, das potencialidades e da caracterização da estrutura do funcionamento de cada enclave, num diálogo permanente com os múltiplos interlocutores e principalmente, com os próprios moradores, que são os que aprovam cada projeto em assembléia pública na favela.

A formulação do Partido Urbanístico constitui assim a peça chave de todo o processo projetual, e implica estruturar o espaço, definido com base na articulação de um traçado vetorial, através de uma seqüência de pontos dinâmicos e pontos estáticos que extraem sua lógica das próprias condições locais, incluindo os conflitos e contradições existentes, mas interpretando-os com um novo caráter transformador, aberto. Neste sentido, a função da imagem, do "design" específico, é da máxima relevância para permitir que se constituam focos de identidade (núcleos identitários) capazes de galvanizar o imaginário coletivo, singularizando cada intervenção. Longe de uma arquitetura estandarizada, do que se trata é de buscar sempre o elemento de identificação, de diferenciação. Neste sentido, criatividade e elaboração estética vão juntos, pois a estética é a disciplina que dá sentido às coisas e não só o que se refere ao aspecto formal.

O ponto de partida para a formulação do Partido Urbanístico (que busca capturar e estruturar as ordens espaciais que subjazem às paisagens configuradas aparentemente sem sentido) é a elaboração do esquema de leitura da estrutura do lugar, que representa graficamente a configuração descontínua e não-homogénea, mesmo que conectiva, de cada local, identificando relações entre áreas de intensidade diferencial, dentro de um campo coerente. Esta identificação considera as relações de densidade, tamanho e estruturação topológica, como aspectos fundamentais. As questões a serem equacionadas no Partido Urbanístico são:

  • Delimitação criteriosa do problema e da área de intervenção.
  • Estabelecimento de metas imediatas e mediatas (Plano de Intervenção - Plano Ideal),
  • Formulação detalhada do programa de atuações,
  • Identificação das fontes de financiamento / parcerias,
  • Definição da metodologia de implementação,
  • Previsão de articulação com outros programas (municipais, estaduais ou federais),
  • Definição do início do processo (identificação de pontos exemplares),
  • Previsão do plano de ataque de obras.

    Uma importante função social do urbanismo e da arquitetura nas favelas é a de permitir materializar o direito à cidade para os mais desfavorecidos, e assim, junto com a melhoria das condições de acessibilidade, das condições ambientais e a incorporação de equipamentos e serviços de interesse comunitário, oferecer uma nova condição de urbanidade aos habitantes, que passam a formar parte integrante reconhecida da cidade formal, e a partir desse momento, se integrar a um processo de evolução urbana semelhante ao de qualquer bairro normal da cidade.

    Eduard Relph, o geólogo canadense, considera que a paisagem urbana è a expressão do que somos, um espelho da existência cotidiana; no mesmo sentido podemos dizer que, como espaço de vida cívica, o espaço urbano é sem dúvida, um bem público, e como tal, seu tratamento deve ser considerado ao mesmo nível dos serviços e equipamentos básicos.

    A paisagem urbana das favelas latinoamericanas, complexa amálgama de natureza e artifício, tem seus próprios "códigos genéticos" que é necessário desvendar. Para poder operar nelas modificações substantivas que não eliminem as qualidades existentes, é necessário captar seus equilíbrios territoriais e sua complexidade semântica , transcrevendo e transferindo seus valores qualitativos, sociais, econômicos e funcionais, numa estruturação projetual que possa lhe dar efetividade, realiza-los e potencializa-los.


    Vista aérea da Urbanização de Fernão Cardim
    (Rio canalizado, Praça de Articulação favela-bairro, Edifício de relocação e Campo de futebol)

    Para isto é necessário tornar claras as determinações do sitio e a dimensão telúrica de um território, concedendo especial atenção à dinâmica dos laços sociais e às proximidades existentes, com o objetivo de que o espaço se torne apto ao desenvolvimento de novos hábitos de convivência e interação.

    Nos projetos que eu realizo, a relação buscada com o contexto é no sentido de transfigurá-lo, magnificá-lo e lhe dar uma universalidade tomada dos usos e práticas sociais existentes em cada comunidade. O princípio de atuação é desde o início espacial, levando em conta os condicionamentos existentes, as linhas de força definidas ao logo do processo de configuração histórica, entre cada favela e seu entorno.

    Desta forma, pensar a estruturação urbana de uma favela implica trabalhar com o suporte das atividades e da rede de relações existentes, buscando reforçar suas características mais específicas, criando ordenações que as contemplem, as ampliem e as ponham em valor, permitindo que se gere um novo sentido de pertença.

    Partindo do reconhecimento do tipo e da intensidade das relações de convivialidade verificadas, cada projeto busca reforçar o poder de congregação dos lugares já constituídos, ampliando-os e resignifidicando-os através da introdução de novos equipamentos e edificações para prestação de serviços sociais, tais como centro cívico, creche, centro cultural, centro profissionalizante, núcleo de apoio às atividades comunitárias, centro ecumênico, centro esportivo, centro de geração de trabalho e de renda, etc., que cumprem na favela a função de "monumentos", quer dizer, de agentes estruturadores urbanos, com valor simbólico.

    Configurar estas edificações, estes novos centros de vida comunitária, diferenciando-os entre os que cumprem uma função de articulação da vida interna da comunidade e os que funcionam como referências em relação aos bairros vizinhos, é parte fundamental de cada projeto.

    Cada partido urbanístico elaborado se baseia na formulação de um esquema de centralidade específico, que pode ter um caráter linear (quando se configura constituindo seqüências interconectadas de atividades, como no caso de Fernão Cardim no Rio ou Campodónico em Val Paraíso no Chile) ou um caráter pontual (quando configura centros de atividades concentradas em torno de vazios estruturadores tais como os espaços heterogêneos de Fubá-Campinho e Salgueiro no Rio, Villa 31 em Buenos Aires e Santa Fé no México).

    A favela de Vidigal, pela sua vez, constitui um caso especial de centralidade linear sinuosa multipolarizada, configurada ao longo da rua principal de acesso, começando na praça de articulação favela-bairro e culminando no mirante projetado no alto do morro. As atividades cívicas, culturais, esportivas, de lazer e de prestação de serviços, se dispõem sobre este eixo. Um teleférico foi projetado para atravessar diagonalmente a favela contribuindo para reduzir o fluxo interno (muito intenso) de veículos, ao mesmo tempo que possibilitar o acesso à magnífica vista da zona sul da cidade e das praias, permitindo inclusive a visita turística, interconectando a favela aos bairros vizinhos de São Conrado, Rocinha, Gávea e Leblon.

    Os edifícios arquitetônicos projetados cumprem neste contexto um papel fundamental; eles são as marcas visíveis de uma nova "aura" do lugar, no sentido que representam a conquista do direito à arquitetura e aos serviços dos quais são portadores.

    Tanto as creches, como no caso do Campinho e Fubá, ou uma vila olímpica, como no Vidigal, ou um grupo de edificações de serviços diversos configurando a praça de Campinho, ou um centro de atividades esportivas, comerciais e de lazer em volta do campo de futebol no Salgueiro, ou o edifício de relocações em Fernão Cardin, ou o centro de apoio às atividades comunitárias no Fubá, constituem o início da chegada dos elementos da cidade formal à favela, com o mesmo nível de elaboração formal e espacial.

    Estas edificações constituem na favela marcos relevantes da presença das instituições do poder público e são reconfiguradoras da paisagem, estabelecendo novas referências qualitativas. Estes edifícios funcionam como "balizadores" no sentido de Kevin Lynch e provocam uma requalificação ambiental e edilícia, desencadeando um processo de recuperação física do entorno. Por este motivo devem ser considerados em conjunto, pois surgem ao mesmo tempo e se instalam de uma vez só, na percepção dos habitantes do lugar.

    Entre os projetos premiados na Bienal de São Paulo encontra-se a favela de Fernão Cardim, onde toda a área que margeia o rio Faria (um não-lugar antes da intervenção) foi pensada para levar a cidade à favela, isto é, atuar como um local de integração favela-bairro criando uma área urbanisticamente tratada incluindo equipamentos esportivos, serviços comunitários, comércio e unidades de relocação. O projeto buscou diluir os limites entre a cidade formal e a favela criando um "continuum" urbano onde a cidade partida se dissolve. Numa visita ao local, Millôr Fernandes indagou: onde era a favela ?

    O caso de Fernão Cardim constitui um exemplo de criação de uma centralidade linear pontuada pelos principais "acontecimentos" urbano-arquitetônicos projetados; a praça de articulação favela-bairro, o edifício de relocação, a sede do posto de orientação urbanístico e social, o campo de futebol com as edificações de apoio, a creche, etc.


    Praça de Articulação Favela-Bairro, Vidigal

    Na favela de Fubá-Campinho, o Partido Urbanístico elaborado consistiu na definição de um grande espaço público integrador, com características de praça cívica, onde se estruturam e amalgamam diferentes ambiências. Praça de acesso, espaço para jogo de crianças, espaço para idosos, campo de futebol com arquibancada, creche, núcleo da Comlurb, sede do posto de orientação urbanístico e social e unidades de relocação, acessados por novas vias de circulação, constituem um "core" que redefine e potencializa a centralidade previamente existente.

    Na favela do Salgueiro a intervenção consistiu no reforço da centralidade já definida pela existência do campo de futebol e do ginásio coberto adjacente, localizados no centro da área de intervenção, reformulando-os a partir de um novo traçado viário e incorporando mirantes, lavanderia comunitária, tratamento de espaços residuais, unidades de relocação e tratamento paisagístico geral. A principal via de pedestres, a escadaria da rua Olímpia reformulada, foi tratada como uma "promenade" pontuada por equipamentos para encontro e convívio dos moradores.

    No caso da Favela do Vidigal uma única rua principal que atravessa a comunidade de alto a baixo, constitui a espinha dorsal que costura todos os "eventos" distribuídos ao longo dela, tratados como pontos de singularização que definem setores com identidades específicas. A Vila Olímpica e seu entorno, o ginásio e suas áreas conexas, o centro profissionalizante, a praça criada junto à sede da associação de moradores, o parque ecológico, o tratamento do Largo do Santinho, a remodelação do "Teatro Nós do Morro", a sede do núcleo da Comlurb e a praça principal de acesso, são alguns desses pontos principais. Isto constitui um percurso que culmina no belvedere onde está prevista a chegada do teleférico projetado.

    Mas, se "as cidades da América não tem tempo de se tornar antigas", como disse Claude Lévi-Strauss em "Tristes Trópicos", isto não é, de forma alguma, necessariamente um handicap, pelo contrário, é necessário aprender a lidar com isso e transformar os obstáculos em fonte de criatividade, o que nos obriga a uma forma diferente de "composição", se é que se pode utilizar este conceito mesmo que com muitas ressalvas. Desta forma, no caso da urbanização de favelas do que se trata é de elaborar estratégias projetuais partindo da leitura "estrutural" das potencialidades e limitações encontradas em cada caso, e das quais é necessário derivar os princípios básicos que deverão nortear cada projeto específico.



    Jorge Mario Jáuregui