Favelas
Projetando na Contramão

 

 
 


Vista dos edifícios de relocalização e da creche na Favela dos Macacos

A questão das favelas do Rio de Janeiro vem sendo alvo da atenção de arquitetos e urbanistas desde meados da década de 90. Se anteriormente constituía uma discussão fora da pauta da classe profissional, hoje podemos dizer que o trabalho em favelas figura necessariamente nos currículos dos escritórios de arquitetura mais atuantes na cidade. Tal processo, de resignação ao real, ao vizinho indesejado que bate a nossa porta, contém muitos aspectos que podem ser de interesse observar.

O Rio de Janeiro, por condições topográficas particulares, apresenta em toda sua área urbana um tecido que se encontra totalmente mesclado entre o setor formal e o chamado informal, as favelas. A crescente ocupação dos morros da cidade é um processo de longa data, cujo efeito multiplicador torna-se evidente mesmo ao mais desatento morador.

Somado a este processo, hoje presenciamos um quadro de crescente questionamento a certas práticas urbanas oriúndas do Movimento Moderno. Em se tratando de Brasil, esta pesada herança sempre deve ser mencionada, uma vez que ainda paira sobre certos setores da arquitetura carioca uma necessidade de consagrar a genialidade, o expressionismo gratuito e fórmulas de cidade apenas comprometidas com ideais de otimização e eficácia.

Neste sentido, é possível afirmar que o trabalho nas favelas é atualmente o movimento que mais explicitamente oferece uma crítica ao pensamento urbano tecnocrático e funcionalista. A maciça construção de conjuntos habitacionais cartesianos nas periferias da cidade foram iniciativas que rapidamente mostraram sua obsolescência. Ao melhor estilo "not in my backyard" populações eram removidas com o objetivo de se "limpar" as áreas mais nobres da cidade. Em um momento intermediário, favelas localizadas em zonas periféricas eram presenteadas com conjuntos habitacionais nas suas adjacências, para regularizar, de certa maneira, uma situação inevitável.

Foi somente a partir de 1994 que o poder público assumiu de fato a condição irreversível da favela, instaurando o programa Favela-Bairro. Integrar a favela ao contexto urbano se converteu na idéia central para afrontar esta realidade latente. Isto implicava em dotar o setor informal, das infra-estruturas, serviços públicos e condições de acessibilidade disponíveis na cidade formal, buscando os pontos de conexão com ela. Se tratava, portanto, de oferecer facilidades urbanas básicas para restituir a cidadania e garantir uma existência mais digna a quase um terço da população carioca

No entanto, é sob outro procedimento que o programa Favela-Bairro parece oferecer uma luz nova ao pensamento urbano mais viciado. A introdução de espaços públicos e a prioridade na construção de instalações comunitárias inverte a prática recorrente de se pensar a cidade a partir do projeto de modelos habitacionais seriais e autônomos. A implantação de novas unidades residenciais foi realizada apenas quando se fez necessário demolir barracos situados em áreas de risco ou que impediam obras de caráter infra-estrutural. A grande ênfase foi dada à esfera publica e ao espaço coletivo, aqui entendidos como aquele "vazio construído" de que falava Colin Rowe.

A clareza em relação a necessidade de se projetar estes "espaços não-construidos", considerando seus fluxos naturais, os encontros, referências e identidades da vida cotidiana de cada favela, é sem dúvida o diferencial a ser ressaltado. A cidade existente a ser trabalhada passa a ser aquela informal, cujo processo de formação - e contínua transformação - escapa do entendimento convencional e de qualquer tentativa de sistematização. Possui características estéticas e culturais muito particulares, nas escalas da residência, de seus arranjos espaciais e de assentamento no território, sendo de difícil apreensão por parte de arquitetos e urbanistas formados dentro dos parâmetros acadêmicos brasileiros. Os profissionais envolvidos com o Favela-Bairro vem realizando um contínuo esforço de projetar na contramão, pondo finalmente em questão uma formação acadêmica comprometida com um ideal de arquitetura e de cidade há muito tempo caducado.


Espaço comunitário entre os edifícios de relocalização

Arquiteturas Cuidadosas

Um conceito aplicável ao entendimento da favela do Morro dos Macacos é o de heterotopias de Michel Foucault. "Espaços-outros", de existência marginal, que possuem uma lógica particular de configuração, movimento e expressão formal.

Como organismo vivo, a favela proliferou pelo território urbano apropriando-se de áreas livres e zonas consideradas de risco, em um processo movido pela necessidade imediata de abrigo. São construções precárias erguidas pelo próprio morador com os mais diversos materiais. Estes vão sendo paulatinamente substituídos por outros mais duráveis e a área edificada é gradualmente aumentada. Não existe projeto prévio, nem restrições formais. O caráter provisório de abrigo é o aspecto que singulariza estas construções. É uma realidade em contínuo movimento, cuja aleatoriedade dos processos de transformação impede uma cartografia definitiva. A instantaneidade é o retrato mais fiel que se pode ter destas comunidades num dado momento.

O caos, a desordem e a fragmentação são termos pertinentes para acercar-se a esta realidade singular, dada a imprevisibilidade de suas transformações, a instabilidade de seus fluxos, e a não-linearidade de suas relações internas. O resultado mais imediato é um complexo emaranhado de formas e texturas de distintas procedências. Como organismo urbano, a esfera privada é a que estabelece os vetores das transformações e a sua configuração espacial marcadamente labiríntica. A esfera pública como tal não existe, o que ha é um espaço conector que simplesmente acontece nos interstícios dos espaços privados, nas inúmeras vielas e becos ainda não apropriados pelo acréscimo das construções privadas.

Jorge Mario Jáuregui, vencedor do concurso para o Morro dos Macacos, estabelece uma trabalhada sintonia com a complexa realidade que se apresentava. Uma favela de médio porte - 12 mil habitantes - em que a necessidade de abertura de vias demandava a relocação de 66 famílias, a construção de um centro de geração de trabalho e renda e de várias praças, o tratamento de todas as ruas, becos, vielas, escadarias e espaços residuais, além da criação de 3 creches e de uma lavanderia comunitária. O terreno disponível situa-se na fronteira da favela com a cidade formal, uma área de transição a ser incorporada por ambas realidades. De difícil abordagem, pode-se dizer que é neste processo de incorporação setor formal (bairros) / setor informal (favelas) que encontramos a síntese do projeto em si, e o aspecto que destaca a obra de Jáuregui dentre um centenar de intervenções promovidas pelo programa Favela-Bairro.

O projeto do setor aqui exposto parte da necessidade de inserir três novos objetos com programas e escalas distintas - núcleo residencial, uma creche e lavanderia comunitária - articulados por uma estrutura que contemplasse a criação de novas centralidades, o reforço das vocações existentes e o relacionamento mais direto com o bairro vizinho. A partir da leitura da estrutura do lugar, Jáuregui extrai os pré-textos projetuais que direcionam seu partido urbanístico e fundamentam a implantação e a concepção formal de sua proposta.

 

Em sua intervenção na favela de Morro dos Macacos, o autor identifica e assimila a fragmentação da realidade que se apresenta, oferecendo em contrapartida, seus fragmentos. Fragmentos que não priorizam este ou aquele programa, e sim sua capacidade formal e estética de articular, ressaltar e dignificar o convívio e a tradição desta comunidade. O claro entendimento do movimento e dos fluxos naturais da favela está na base deste roteiro de intervenção.

O primeiro fragmento deste arranjo é o núcleo residencial, aqui utilizado desde a sua dimensão essencialmente pública, como objeto capaz de compor um espaço de uso coletivo. O programa é dividido em dois blocos de apartamentos, duas peças que o autor insere como referenciais urbanos. Cria-se formalmente um pátio comunitário e um caminho alternativo para o interior da favela.

O segundo fragmento é a creche, um objeto que reforça o trajeto sugerido pelos novos blocos de apartamentos, e que é naturalmente reforçado pelo seu próprio uso. Se estabelece um ponto de pouso entre a favela e a cidade formal, entre o local de moradia e o de trabalho. Um lugar onde as mães que trabalham na cidade formal deixam seus filhos durante o dia.

O terceiro fragmento, a lavanderia, é inserido aos pés de uma grande escadaria que acede ao alto da favela, incentivando um maior convívio em um lugar apenas de conexão. Um ponto de percurso obrigatório para milhares de moradores, em uma parte da cidade que ainda goza dos benefícios das instalações regulares de lixo, água e esgoto.

Dos movimentos e fluxos, Jáuregui parte para o objeto em si. Trata-se de uma sutil operação de formalizar o informal, projetando edifícios e espaços que propiciam o encontro e o acesso à cidadania, imprimindo o valor de permanência a uma realidade escorregadia e em continua transformação.

Falar em permanência nos remete ao discurso de Aldo Rossi, na sua conceituação de monumentos e elementos primários da cidade. Como valor transcendente, a permanência se encontra nas favelas em suas manifestações culturais como a música ou a dança, porém como expressão formal esta não poderia ser contemplada pela lente rossiana já que o espaço da moradia não constitui o eixo de seu discurso. Por outro lado, permanecem as práticas e os encontros cotidianos que definem uma interação social muito intensa, e o próprio espaço da habitação como síntese de um modo de viver em comunidade.


Edifício de relocalização

A inserção do núcleo residencial no conjunto de Morro dos Macacos estabelece um marco central de referência, que de certa maneira congela a realidade fugidia desta favela. Jáuregui propõe assim um entendimento mais tolerante para o termo "monumento", tratando-o como elemento urbano-arquitetônico - ainda que de caráter privado - que consagra formalmente a vida pública.

O programa residencial é dividido em dois blocos idênticos e lineares implantados obliquamente entre si. O espaço entre os blocos cria formalmente um percurso alternativo, dinâmico e privilegiado para os moradores, e um generoso espaço para convívio que contém uma pequena praça. Para se chegar a este espaço, os moradores são convidados a seguir seu já acostumado faro labiríntico. Subindo a rua principal de acesso do bairro, se entra numa viela que ao final se dobra para a entrada do conjunto. Jáuregui nos situa no vértice mais fechado de um prisma triangular, que gentilmente se abre para enquadrar o Morro ao fundo. A regularidade dos blocos é atenuada por esta implantação geométrica irregular, lembrando-nos que estamos na transição entre a cidade projetada e a informalidade da favela. O coroamento das fachadas em sólidos intercalados (recurso utilizado para abrigar as caixas d´água) oferece um perfil descontínuo, porém tipificado, que em seus vários ângulos e jogos de luz e sombras, retoma a fisionomia multifacetada do lugar. Numa visão a distância, o congestionamento do olhar próprio destes lugares, é atenuado por esta silhueta rapidamente identificável no conjunto da favela.

A realidade desta favela é também incorporada ao projeto pela própria configuração dos apartamentos, todos em dois pavimentos, acessíveis individualmente pelo térreo, ou em conjunto, pelas circulações abertas que levam ao pavimento superior. O autor preserva e exalta a face pública destas comunidades, que tem nos percursos entre barracos o maior lugar de encontros, e na proximidade das construções a certeza de estar vivendo em coletividade. A inserção de bancos e jardineiras em todos apartamentos térreos reforça esta idéia e faz uma pausada intermediação entre as esferas pública e privada.

Se comparada aos blocos residenciais, a creche apresenta um resultado de menor apelo estético. A irregularidade formal e compositiva parece diluir-se mais facilmente no conjunto da favela, já que o princípio convencional de ordem somente parece ser entendido quando contrastado ao caos. Por se tratar de uma instalação de uso comunitário, seu papel como fragmento articulador da esfera pública se vê naturalmente privilegiado por sua própria função, liberando a concepção formal para uma leitura mais contextual.

A lavanderia, por sua vez, é colocada na esquina de dois importantes acessos ao interior do Morro dos Macacos. Uma intervenção em menor escala e dentro de um caminho já consolidado resultou em um objeto que manifesta sua presença nas formas e volumes irregulares tratados com forte apelo cromático. Como querendo ressaltar a novidade dentro de um percurso cotidiano e pouco atraente, Jáuregui oferece um retrato utópico de como poderiam ser as construções desta favela, caso um dia pudessem ser finalizadas.

Deve-se observar nestas obras um formalismo nada convencional ou gratuito que é moldado a partir do campo de tensões em que se insere cada objeto. Não vemos nas formas de Jáuregui recursos figurativos fáceis ou qualquer referência literal à realidade da favela. Trata-se de um sutil mecanismo de criar relações dialéticas que respondem a situações pontuais dentro de um contexto altamente complexo.

Em um olhar comparativo, percebe-se nestas novas construções que a ousadia no tratamento cromático é inversamente proporcional à escala dos objetos projetados e à regularidade formal proposta. Quanto mais o edifício se contrasta formalmente no contexto da favela, mais este é convidado a ser discreto em suas cores. O que unifica estes distintos objetos é a predominância de superfícies monocromáticas no conjunto da composição. Uma sensação de acabamento, permanência e dever cumprido bastante almejada, porém raramente oferecida pela maioria dos barracos.

Ainda que pensado a partir da inserção de fragmentos, o projeto de Jáuregui deve ser admirado por uma lente mais distante, pois a maior riqueza de sua proposta não se encontra na escala dos detalhes construtivos nem tampouco na excelência dos materiais. Para dialogar com o caos e o conflito que impera nesta comunidade, Jáuregui adota atitudes criteriosas derivadas de uma atenta leitura da estrutura física e social do lugar. Como resultado, edifícios e espaços comunitários que imprimem traços particulares de ordem e referência urbana, soluções formais de grande originalidade e uma estreita "cumplicidade" com a realidade existente. Arquiteturas cuidadosas que despertam orgulho cidadão para esta parcela da população constantemente excluída.

 

 

 

 

 

 

 

On the Road

Há 24 anos radicado no Rio de Janeiro, o arquiteto Jorge Mario Jáuregui vem se destacando no cenário brasileiro por suas intervenções no Programa Favela Bairro em projetos que lhe renderam um reconhecido mérito internacional. Em 1999 foi ganhador do "Grande Prêmio de Urbanismo" da IV Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo, em 2000 do "Sixth Veronica Rudge Green Prize in Urban Design" da GSD Harvard, e em 2002 foi representante do Brasil na 8a Mostra Internacional de Arquitetura da Bienal de Veneza e ganhador do 1º Prêmio de Investigação da Bienal Iberoamericana de Santiago do Chile.

Jáuregui inclui em seu currículo um total de 20 intervenções em favelas, que inclui os premiados projetos para as comunidades de Fernão Cardim, Fubá-Campinho, Salgueiro, Vidigal e Rio das Pedras. Parece ser que sua trajetória profissional encontrou no programa das favelas o caldo de cultivo para suas mais diversas afinidades disciplinares, e um amplo campo de experimentação para seu processo de desenho urbano. Pesquisas de caráter econômico e sócio-cultural feitas aos moradores destas comunidades estão sempre subsidiadas pela psicanálise, onde demanda e desejo são igualmente relevantes num extenso trabalho transdisciplinar. Por se tratar de uma aproximação holística ao projeto urbano, não se pode identificar no trabalho de Jáuregui qualquer tentativa convencional de sistematização do conhecimento, nem tampouco uma fórmula para classificar suas inúmeras estratégias formais. Em suas intervenções nas favelas podemos dizer que cada objeto projetado está culturalmente determinado. Peças que isoladas não possuiriam autonomia arquitetônica, nem tampouco significação relevante caso fossem retiradas de seu contexto específico.

Também deve ser aqui ressaltada a sua participação no programa "Rio-Cidade" da Prefeitura do Rio de Janeiro, com a intervenção urbana no bairro do Catete. Neste trecho da cidade formal, a proposta de Jáuregui parece incitar um caminho contrário ao do "Favela-Bairro", porém dentro de uma mesma lógica dialética. Imprimir valores de ordem ou caos em situações espaciais em que estes são menos sentidos. Ao mesmo tempo que estrutura rigidamente o traçado urbano da área, Jáuregui desestabiliza esta ordem planimétrica com a inserção de objetos e mobiliários que fogem aos padrões convencionais, criando identidades diferenciadas para cada trecho do bairro.

Na escala do objeto singular, a "Casa Klein" complementa seu viés experimental. Um projeto inspirado na superfície topológica da "Garrafa de Klein", onde Jáuregui exercita as mais variadas articulações formais a partir de uma sequência interrelacionada "exterior-interior-exterior" interligada por escadas-conectores. Mais um exemplo de uma vocação formalista nada gratuita.

Andrés Passaro / Laís Bronstein


Sistema construtivo misto nos edifícios de relocalização