Favelas
Transe e Arquitetura
(sobre a criatividade)

 

 
 

Pensando nas possíveis relações entre transe e arquitetura, a primeira associação que me vêm è entre transe e criatividade, no sentido de momento de passagem de um estado a outro (de uma descrição de dados e desejos, a uma estruturação consistente do material e do imaterial) e de uma suspensão do sentido para a elaboração de outro/s novos.
Também pensei imediatamente em “Terra em Transe”, de Glauber, como uma associação com o estado de convulsão/conturbação.
Glauber Rocha fala, em relação com o filme, do problema geral do transe Latino-americano e não somente brasileiro. Ele se refere do transe como instabilidade das consciências e como momento de crise. Como choque de tendências, de interesses, e como momento de violentas disputas. É num sentido político que ele utiliza a referência a transe.

Retomando agora o transe como convulsão, isso no remete à situação na qual nos submergimos em quanto criamos, e que eu gostaria de referí-la à ampla gama de conexões entre a multiplicidade de variáveis que intervêm no processo projetual, que implicam sempre uma série de movimentos, não lineares, entre os diferente fatores. Neste sentido envolve uma hesitação, um estado de atenção simultânea a toda essa série de fatores que determinam uma forte tensão entre controle e descontrole, entre demanda e interpretação, entre consciente e inconsciente. O que claramente tem a ver com a luta para articular a subjetividade com as coações de todo o tipo, materiais e imateriais (sociais, econômicas, políticas, ideológicas, tecnológicas, dos meios de comunicação e de controle, de valores) que atuam sobre o ato projetual . Pois o transe em arquitetura tem a ver com o esse ato. Com o ato criativo que luta contra a resistência do status quo e das próprias limitações da linguagem e dos meios de representação.

Quando estamos criando algo extraordinário está sendo proposto e posto em movimento através dos poderosos meios da improvisação; neste caso, a que me interessa, a improvisação da criação urbanística e arquitetural. Que implica sempre re-imaginar a relação entre a subjetividade e o mundo, baseados na busca da configuração de espaços capazes de favorecer o encontro e a transformação.
Entre as outras assepções possíveis de transe, podemos associar também as idéias de ato arriscado (o da criação é sempre um ato arriscado; inventar o novo, re-criar, é uma atividade sem garantias). No mesmo sentido, a idéia de ocasião perigosa (o ato de criar pode nos colocar em situações de muita tensão, e mesmo de risco, em relação com o outro e com nós mesmos). E também a idéia de momento aflitivo, pois criar nos enfrenta sempre ao desconhecido, à “folha em branco”, obrigando-nos a nos movimentar, em boa medida, “às escuras”, explorando regiões da nossa mente que não conhecemos e às quais não temos acesso consciente. E das que só se emerge  no emaranhado dos traços e rascunhos da vontade expressiva, sempre conduzida pelo nosso desejo. Que è, como sabemos desde a psicanálise, “desejo de outra coisa”, obscuro objeto que apenas conseguimos vislumbrar nessas “entre-linhas”.
Incluindo a idéia de lance, de “salto ao vazio”; “coup de dés”, acaso, desafio.
Assim, transe em relação com a arquitetura tem a ver com subverter o hábito, com “ver de outra maneira”; ver o outro lado da “normalidade”, do anestesiado pelo hábito. A través do transe pode-se manejar de forma nova o inviabilizado pelo que se tornou habitual. Permite-nos “ver” o mundo de forma diferente, re-criando-o e posibilitando a emergência do excepcional.
E o que nos interessa especialmente, posibilita a migração do normal, do habitual, para o singular.

Jorge Mario Jáuregui