Eu pensei na famosa formulação de Freud; governar, ensinar e psicanalisar são impossíveis. A não ser que possamos incluir o planejar para o outro no governar, ele é um outro impossível em cujo terreno as nossas ações se desenvolvem. Não bastasse, somos o país do contraditório. Tendo isso em conta, Lúcio Costa proferiu; “Digam o que quiserem, mas Brasília é um milagre”. Em 1964, Clarice Lispector declarou (transcrito do livrinho sobre a passagem de Max Bense no Brasil, org. Ana Luiza Nobre); “Foi construída sem lugar para ratos. Toda uma parte nossa, a pior, exatamente a que tem horror a ratos, essa parte não tem lugar em Brasília. Eles quiseram negar que a gente não presta. Construção com espaço calculado para as nuvens. O inferno me entende melhor. Mas os ratos, todos muito grandes, estão invadindo. Essa é uma manchete invisível nos jornais. Aqui eu tenho medo. A construção de Brasília; um estado totalitário.” A atualidade imediata do último trecho é assustadora ... Lugar para ratos nunca ninguém tinha reivindicado. Como tomar isso em consideração? Na nossa experiência anterior, abordamos a questão do planejamento urbano por um viés antropológico, a saber: o cotidiano, o vivido, o entrecruzamento de todos os signos em um dado sujeito, tudo com o que ele se encontra. Mas não seria suficiente hoje. Em primeiro lugar, o Brasil foi um caso exemplar da intervenção do Estado na economia e no território. A revolução científico-tecnológica, especialmente na micro-eletrônica e na comunicação, e a crise e a reestruturação do capitalismo e da economia mundial, tornaram a situação bem diversa. Novas territorialidades vêm emergindo no mundo em diferentes escalas, e a própria extraterritorialidade surge como um conceito a considerar na produção do espaço. O conflito é agudo. A revolução tecnológica é um processo de mudança caracterizado por uma nova forma de produção baseada na informação e no conhecimento. A essência do novo modelo gera uma nova estrutura de poder e novas estratégias espaciais. O cenário que o capitalismo atual nos oferece, são fábricas, lojas, trens, aviões civis e militares, sem gente. E onde estarão as pessoas? Estarão em casa ... trabalhando. Trabalhando 24 hs, pois tudo o que a gente fizer em casa, inclusive os nossos dejetos, serão mercantilizáveis. É a forma mercadoria que tem comandado as múltiplas conexões, e é preciso observar esse passo a mais na apropriação do cotidiano. O valor de gozo, para a psicanálise, é o que resta entre o valor de uso e o valor de troca. Uma certa resistência ou sobrevivência do valor de uso, tem sido constatada de diversas maneiras, e é desejável. A presença daquilo que não serve para nada, nem mesmo para o lazer, talvez possa ser preservada. A total interdependência das economias nacionais em nível do capital, do trabalho e do processo produtivo influenciam também sobre o novo espaço, em que nações e países deixam de ser as unidades econômicas da nova realidade histórica. A escala planetária de atuação é torna-se possível. A corporação independente do seu ambiente imediato, permitindo-lhe tirar partido da diversidade do espaço. Fica, assim, facilitada a divisão espacial do trabalho, dissociando-se espacialmente as operações e a produção de alto nível, que exigem trabalho altamente qualificado e se localizam em áreas limitadas – as ‘cidades mundiais’ –, das operações de rotina, que, utilizando trabalho não qualificado, podem se estabelecer em variada gama de localidades, em construções gigantescas cuja justaposição à vida local implica em profundas clivagens ambientais e sociais. (Bertha Becker, 2008) Em contrapartida à tamanha reconversão do espaço, os movimentos reivindicatórios para seu uso tornam-se um fenômeno mundial. Não se resumem às reivindicações por trabalho, mas pelo espaço inteiro, pela vida cotidiana. No cerne desses movimentos existe o conflito, a disputa palmo a palmo pelo espaço. Também aí podemos sentir a oposição entre o que se tornou valor de troca e um resto não integrado em que o espaço perrmanece como valor de uso, de usos múltiplos do espaço vivido pela população. Nesse contexto, a questão se coloca para cada um e para todos: coletividades, vilas, regiões e nações. O Estado e o capital não são entidades, e sim relações sociais. No momento em que se privilegiam as relações multidimensionais do poder, privilegia-se a prática espacial e o território, não mais apenas do Estado-Nação, mas dos diferentes atores sociais. (Raffestin, 1980); A territorialidade manifesta-se em todas as escalas, desde as relações pessoais e cotidianas às mais complexas relações sociais. Ela se fundamenta na identidade e pode repousar na presença de um estoque cultural que resiste à reapropriação do espaço, de base territorial. A malha territorial vivida é uma manifestação das relações de poder, da oposição do local ao universal, dos conflitos entre a malha concreta e a malha abstrata, concebida e imposta pelos poderes hegemônicos. A década de 1980 pode ter sido perdida em termos econômicos na América Latina, mas não o foi em termos sociais. A sociedade civil se organizou como nunca antes verificado. Projetos alternativos surgiram, constituindo embriões de novas territorialidades. Durante séculos negligenciada, a territorialidade indígena vem emergindo nas últimas décadas, expressa no seu crescimento demográfico e em organizações associativas, as quais, com apoio de ONGs, fazem ouvir suas vozes, tendo conseguido a demarcação de suas terras. É impressionante a história do desconhecimento do índio no Brasil, e a produção do seu espaço pelos brasileiros, especialmente na Amazônia. O índio é a nossa parte incatequisável. Eles sim configuram diversas nações, e viveram sua história à parte do que se chamava então Brasil, laços com as Américas e os europeus totalmente diversos. O espaço amazônico era a selva impenetrável, folclorizado pelo Brasil urbano de Carmen Miranda. O Marechal Rondon e o trabalho magnífico dos irmãos Villas Boas marcam os primeiros intentos positivistas de conhecer os nossos bons selvagens. Com a ditadura militar, os espaços monumentais devem ser incorporados ao Brasil grande; ora, se houve algum sentido na qualificação “gigante pela própria natureza”, a Amazônia era o que a justificava, com seus 60% da área do país – as medidas vão se alterando. Para a visada atual deste espaço, que implica hidroeletricidade, biodiversidade, urbanidade, etc... as reservas indígenas começam a atrapalhar. Os antropólogos brasileiros tem lutado para resistir à onda do nosso capitalismo aí sim selvagem. Entre outras coisas, conseguiram desfazer na Constituinte a armadilha da emancipação do índio, conferindo-lhe um estatuto de cidadania diferenciado. E no entanto, é preciso perseguir o ponto ideal, uma possibilidade de junção entre a vida e o plano espacial formal. Suzana Queiroga, artista plástica, pesquisadora e professora, tem a impressão que este era o caso na pré-renascença; as obras de arte e a arquitetura se continuavam uma na outra, antes de que diversas funções se diferenciassem e ganhassem autonomia - entre outras mudanças importantes. Como se o espaço físico, ao mesmo tempo em que se territorializa, traz em si a extraterritorialidade onde o desejo se movimenta. Assim é no poema de João Cabral: Na paisagem do rio Também para nós, este homem é um sujeito topológico, e esta topologia está conecta o inconectável, as ausências, os vazios. A partir de um certo corte, a extensão pode ser considerada infinita. A partir de um determinado buraco, sobre o qual paira então um pensamento-conceito, como está no texto de Deleuze aqui exposto, temos uma continuidade. Mas uma continuidade imprevisível, que se deforma, como se o plano fosse maleável, pudesse ser vivo; como se ele tivesse essa possibilidade de movimento e reorganização. Como fazer para contar com o imprevisível? Contar com o fato de que as forças que conduzem ao movimento são mais fortes, que a estrutura fixa e ordenada tem que ser minimal, como o esqueleto apresentado por Jorge em Kassel? O que podemos aproveitar neste sentido da experiência dos favela-bairro já realizados? A cada qual seu sedentarismo e seu nomadismo. Conto uma história. O Dr. Sérgio Levcovitz fez uma tese muito interessante sobre o surto de suicídio em massa de jovens índios, de um conjunto de aldeias no Mato Grosso do Norte, há uns 10 anos atrás. O diagnóstico inicial do Estado foi; “o prrobrema é o arrcool”, e providências foram tomadas para isolar a reserva. Mas o buraco era mais embaixo. Aquele grupo indígena migrava há séculos para uma espécie de terra prometida, que os espíritos saberiam dizer quando ela chegasse. Nessa travessia é que os jovens índios consignam a sua pertinência àquela tribo. Enfim, é o exemplo de uma comunidade inteira para quem o trilhar é o próprio caminho. Como a migração estava impossibilitada pelo próprio limite da reserva, o suicídio era a única maneira honrosa de consignar esta pertinência. O reforço da reserva foi a pá de cal para um grupo em extinção. A artista demonstra que o próprio pintar produz o próprio caminho. Naquele ato mesmo, o efeito pede a densidade, a superposição, a luz e o contraste, etc... . Obras como o Caminhando de Lygia Clark apresentam esta mesma possibilidade fundamental. Suzana enfatiza então que os mapas podem ser pensados como fluxos. Por isso dificilmente temos mapas iguais! Temos a cidade, cidades dentro dela, sobre ela, embaixo. As cidades são sistemas compostos de vários sistemas superpostos. Inclui o espaço aéreo, a internet e sobretudo as redes de pensamento, as ramificações históricas e imateriais que se conectam ao todo. Ela cita Proust através de Calvino; “a rede que concatena todas as coisas é feita de pontos espaciotemporais ocupados sucessivamente por todos os seres, o que comporta uma multiplicação infinita das dimensões do espaço e do tempo, de tal modo que o mundo dilata a tal ponto que se torna inapreensível. O contemporâneo, tão vastas são as suas redes, que qualquer mapeamento revela esta inapreensibilidade.” Este adensamento, dilatação do espaço produzido pela circulação subjetiva, é da ordem do inapreensível. De repente, este espaço real aparece numa tomada aérea da cidade, onde o invisível neste sentido, benjaminiano, aparece ao vivo e a cores. Mas só depois. Este adensamento brota justamente do vazio de cada sujeito, e outro poema de João Cabral descreve-o magnificamente, incluindo a metáfora apropriada para aquilo que move a sua construção; vazios do homem não sentem ao nada Paulo Becker
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