A arquitetura e a periferia: manifesto sobre a construção do projeto de articulação sócio-espacial nas megacidades Pedro Cláudio Cunca Bocayuva (Professor do IRI/PUC-Rio, Coordenador do Núcleo de Pesquisa sobre desenvolvimento urbano e sustentabilidade do Centro de estudos dos Países BRIC. Doutor em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR-UFRJ) O diálogo com a psicanálise serve de fio condutor para realizarmos a leitura do livro de Jáuregui o que lhe permite lidar com as dimensões das demandas dos sujeitos e os discursos e aspirações dos poderes e dos saberes dominantes. Recolhe as experiências, reflexões e lições, com suas sobreposições e combinações de esquemas de leitura, que traduz em diagramas, desenhos e construção pela ótica modificada, informada e construída pelo trabalho do arquiteto-urbanista. No contexto fragmentado, crítico e movediço da desmedida do urbano na megacidade, devemos ir além da condição mercantil e flexível, caótica e violenta da condição pós-moderna. Precisamos observar e participar da experiência molecular, das resistências caóticas do conflito e negociação. Acompanhar a reflexão que nasce da sistematização da experiência que resulta do conflito sobre o ordenamento do chamado caos urbano. A imaginação arquitetônica nasce dos meandros da disputa pela criação de respostas para a demanda por direito à cidade que emana da força potencial da mobilização democrática e produtiva da parte dita informal da cidade. A nova cultura sobre o urbano e a reflexão sobre as estratégias e táticas de rearticulação incidem diretamente nas disciplinas e ciências ligadas ao espaço, ao modo de produção e reprodução social pela via da apropriação, funcionalização e uso dos lugares. O arquipélago urbano, os circuitos, as redes e fluxos, as ações e os objetos estão entrelaçados nessa produção social do espaço, cuja marca de desigualdade, segregação e fragmentação exigem uma retomada do urbanismo em bases críticas. O desafio do redesenho técnico, da imaginação espacial e da arte de projetar, distribuir e propiciar novos usos, novos modos de habitar, produzir e viver no espaço é causa para o arquiteto. Por isso, Jorge Jauregui nos convida a entender a complexidade do desafio que atravessa as megacidades, onde a arquitetura e o urbanismo se relacionam como saber aplicado ao espaço, em meio aos processos das micro conjunturas, da economia política e eleitoral, das quase políticas urbanas. Com destaque para as abordagens que se voltam para as favelas como problema e como solução, levando em conta que ainda é parcial o reconhecimento da importância da questão urbana, dada a contraposição entre o espírito empreendedor do capital e a necessidade vital dos espaços de ocupação e autoconstrução das classes ditas subalternas nas megacidades latino-americanas e em especial no Brasil, com destaque para o Rio de Janeiro, essa cidade de intensidades. A busca de uma resposta afirmativa, projetual e crítica, pode se apoiar nas várias ecologias de Guattari como sugere Jáuregui. Mas o arquiteto indica as tramas, como as "urdimbres" que conceitualmente nos permitem mapear os choques, as transformações e os conflitos imanentes ao capitalismo global com seus efeitos sobre a organização e os modos de vida nos lugares. Usando a psinalálise, percorrendo a história para pensar a cidade na atualidade, Jáuregui usa bem o enfoque crítico das disciplinas espaciais, mobiliza a reflexão e o argumento estético e poético e finalmente nos remete para a força da lógica tão atual da topologia lacaniana e da filosofia deleuzeana. Se na economia do gozo do capital vemos o desespero da crise da mobilidade da fronteira colonial e pós-colonial, pela reflexão antropológica presente no livro de Jáuregui pode-se rememorar a experiência da urbanização e do desenvolvimentismo até a era neoliberal, o contraste entre o projeto urbano do poder do Estado nacional. O autoritarismo e a violência da fronteira do capital entram em choque com a demanda impossível do nomadismo indígena, com a demanda do popular e do migrante, do precário e do espaço das práticas informais na atualidade da vida urbana. O efeito paradoxal dessa lógica territorial resulta na figura da reserva com seu efeito trágico, apesar da conquista institucional. Como sugere a “antropologia assimétrica” precisamos buscar respostas para as grandes tribos urbanas. Assim como os índios reinventam, ampliam e projetam direitos no espaço, na cultura e nas instituições os precários da cidade resistem e encontram força no seu fazer cidade. O que vemos sistematizado na proposta de trabalho que parte da leitura do livro de Jorge Jáuregui pode servir de base para a interlocução sócio-técnica, estética e política, que através da arquitetura e do urbanismo emerge como força de saber crítico renovado em nossas cidades. Os primeiros acordes dessa nova música vêm penetrando e reconstruindo as disciplinas e as artes de construção e criação de espaços da moradia, como conquista pública e social, conquista de mobilidade para as forças sociais da periferia que aspiram viver e aceder a novos contextos de bem-estar. Forças até agora comprimidas e encobertas pelo véu dos preconceitos e da segregação. Essa bela “anomalia selvagem”, o discurso sobre a centralidade da periferia, ganha terreno para lidar com os sujeitos coletivos da periferia, na montagem de novos caminhos para refazer e ampliar a cidade como espaço de direitos. A mobilização democrática e produtiva das periferias depende da capacidade de liberar forças no espaço para as articulações dos moradores das favelas e periferias. Populações sedentas de políticas capazes de atender as demandas nascidas de sua resistência e lugar no espaço. O governante, o arquiteto e os grupos sociais mobilizados são desafiados a buscar respostas qualificadas para as justas demandas das populações faveladas, que se colocam diante da tentativa permanente de capturar o território informal e a sua força do trabalho, capturar a potência produtiva do trabalho vivo, do corpo e do intelecto dos habitantes pobres da megacidade. Ao mesmo tempo as políticas de gentrificação procuram mercantilizar o espaço, murar, separar, expulsar e segregar pela distância. As agendas dos grandes investimentos vão exigindo o afastamento das “classes perigosas”, impedindo sua presença nos espaços projetados para os negócios e investimentos em novas ilhas de consumo e serviços. Apesar de seu caráter indispensável quando se trata do seu uso como força de trabalho, o tema da contenção, controle e pacificação das áreas populares se faz acompanhar de retornos do discurso sobre a remoção. No planeta urbano a era urbano-técnica nos coloca diante de perdas crescentes da modernidade líquida. Hoje vemos pela mídia global as crueldades cinicamente instituídas em nome de ações humanitárias e pacificadoras. Violências e resistências como vemos no exemplo do suícidio de indígenas de que nos fala o belo texto do psicanalista Paulo Becker incluído no livro de Jáuregui. Com a incorporação de conceitos psicanalíticos e filosóficos têm início uma construção de uma abordagem do urbanismo que articula as várias ecologias sociais, mentais e ambientais de forma renovadora. Na perspectiva que pode ser depreendida de trabalhos com a reflexão do arquiteto que desenha novos objetos para a Documenta de Kassel, a partir de uma criação em diálogo com um “Loft” que viu na favela, temos possibilidades de formular o desenho das alternativas. Na apresentação de suas ferramentas e metodologia de trabalho, o “Atelier Metropolitano” o espaço de criação e a nova empresa do arquiteto Jorge Mário Jáuregui, nos oferece o acesso para o como se constrói uma metodologia para fortalecer as aspirações por uma ação alternativa qualificada de articulação urbana, desde a reflexão arquitetônica e urbanística contemporânea que começa a ser sistematizada nesse primeiro livro que precisa ser lançado na língua portuguesa. Nesse verdadeiro manifesto arquitetônico que parte da experiência do Rio de Janeiro com destaque para as obras de conjunto realizadas para o Programa Favela Bairro, e para o trabalho de desenho com orientação de tipo topológico como a Casa Klein, o arquiteto nascido em Rosário na argentina ganhou fama e circula nas cidadelas das artes e espaços acadêmicos em vários países. A partir dessa introdução ao diálogo proposto pelo arquiteto podemos pensar na questão da base técnica cultural e política que deve ligar o poder público, o saber técnico e a construção social coletiva que nasce nas chamadas periferias, como caminho para um novo conceito de cidade. Uma cidade policêntrica que fará a passagem da insustentável megacidade atual para a (pós) metrópole do futuro. A cidade em rede será um conjunto de cidades, muitos centros, grande densidade e muita proximidade, com muita conectividade, interação e mobilidade. O lugar onde o bem público e o privado reaparecerão na escala das pessoas, sem perda das vantagens das misturas da grande escala em termos sustentáveis. |