Psicanálise e Arquitetura

 


Croquis de investigación proyectuales, casa Klein

Arquitetura e psicanálise pertencem a campos diferentes de saber e também de práticas, o que não impede que possam ser buscados pontos de interseção. Mas isto não comporta uma "interdisciplinariedade" que implicaria a ilusão de uma complementariedade do conhecimento como tentativa de produzir um "todo" de saber.

Estes pontos de interseção possíveis, produzem-se a partir da "escuta" do que cada campo tem a dizer. E o que tem a dizer a psicanálise, que possa produzir uma interseção com a arquitetura?

Produto da experiência de anos na escuta de demandas projetuais, a interseção com o campo da psicanálise nos alerta para a distinção fundamental em relação com o campo do desejo, que é o campo freudiano.

O desejo que Freud nomeia é enigmático, e se diferencia da necessidade, que pode se satisfazer num objeto adequado. Como é sabido, o desejo é de outro registro para a psicanálise. Ele aparece mascarado nos sintomas, sonhos e fantasias, que são signos de percepção pelos quais uma experiência de prazer ou desprazer tem sido memorizada no aparelho psíquico sob a forma de traços mnémicos. Quando se procura o objeto na realidade, a procura é a partir desses traços, objeto que remete a algo perdido desde o início, mas que deixa uma inscrição. Isto determina a dimensão do impossível para a psicanálise; um impossível lógico.

Podemos entender assim a definição que Freud dá na Interpretação dos Sonhos: "desejo é o impulso de recuperar a perda da primeira experiência de satisfação". Esta primeira experiência de satisfação é de ordem mítica, indicando esse lugar de perda como fundamento, ou como causa, da fala no homem, marcando assim a relação de este ser vivo homem, com a estrutura da linguagem. O desejo comporta um lugar de perda que determina um campo de tensão. Nesse sentido não é adaptativo, não é simplesmente homeostático e por isso não corresponde só ao principio do prazer. Seu correlato é uma ruptura desse principio que se chama na psicanálise, pulsão. Freud a nomeia pulsão de morte, como além do principio do prazer. Isto é diferente da morte biológica. Desejo e pulsão são as duas vertentes do sujeito que determinam a sua realidade psíquica como diferente da homeostase orgânica. Produz-se uma fragmentação que, paradoxalmente, sustenta a função da vida. "A vida é o conjunto de forças onde se significa a morte, que será, para a vida, o seu carril" (Sigmund Freud).

O desejo se manifesta a partir da demanda, nos diz Lacan, e isto adquire grande significação no campo da arquitetura e do urbanismo, pois como veremos, não se trata de responder diretamente a essa demanda. Há uma exigencia de processamento (dessa demanda) que implica articular o desejo com as múltiplas solicitações e condicionantes materiais e imateriais que se exprimem numa demanda projetual. Mas o objeto (arquitetônico ou urbanístico) assume sua função de enunciador subjetivo: isso funciona ou não funciona. Ou o projeto sustenta, através da sua consistência estético-simbólica e ele se constitui nesse enunciador, ou ele fracassa.

A demanda, é a articulação significante na qual devemos escutar o desejo como um aquém ou além da demanda. A psicanálise nos alerta para o fato de que nesta escuta não se trata de "responder" e sim de aportar algo a mais. Que no vínculo que se estabelece, há algo a mais em jogo que não é simplesmente questão de "necessidades". No campo da Arquitetura e do Urbanismo, do que se trata é de ver como se coloca em jogo esse além, referido ao desejo que intervém no ato projetual onde age um saber não sabido, algo do próprio ato da criação do objeto (arquitetônico ou urbanístico) e que é nesse lugar onde o arquiteto está implicado com o seu próprio desejo.

O objeto arquitetônico vai do pequeno objeto (a casa por ex.) ao objeto médio (um edifício de apartamentos, etc), o grande objeto (um hospital, um aeroporto, etc) até o muito grande, a escala extra-grande (um setor de cidade por exemplo) tendo por este motivo uma ampla escala de abrangência: pequena, média, grande, territorial.

Projetar implica construir, costurar e representar "idéias"; idéias capazes de traduzir o "espírito" de uma época, a sua "zeitgeist", representadas na maneira de viver, na sensibilidade estética e nos valores, que devem corresponder sempre à máxima expressão da época. Por isso um projeto deve avançar para muito além das demandas.

Intencionalidade estética e criação de um ambiente favorável à vida são os caracteres estáveis da arquitetura, onde a conformação da matéria e a transformação do mundo físico se processam de acordo com uma "vontade ordenadora". Ao mesmo tempo em que objeto físico, o objeto arquitetônico é sustento de significações, matéria portadora de sentido, matéria significante. Desde este ponto de vista, a arquitetura é uma linguagem, e a psicanálise contribui para esclarecer as relações entre essa vontade ordenadora e a funcionalidade (sempre um limitador no caso da arquitetura, o fato de ter que "servir para", sem falar na pouco adequada expressão "arte utilitária", pois como sabemos com a psicanálise, a arte "não serve para nada").

Lacan diz, "se este edifício nos solicita é pois, porque, por metafórico que for, ele está bem feito para nos lembrar o que diferencia a arquitetura do edifício : seja uma potência lógica que ordena (a arquitetura) além do que o edifício suporta de possível utilização. Assim, nenhum edifício, salvo que se reduza "a la baraque" poderá prescindir desta ordem que o faz parente do discurso. Esta lógica não se harmoniza com a eficácia senão para dominá-la e sua discórdia não é, na arte da construção, um fato somente eventual." O que vem colocar uma distinção clara entre aquilo que funciona, que serve para desenvolver nele alguma atividade, e aquilo que possui uma elaboração formal-espacial consistente (potência lógica ordenadora que determina relações necessárias entre as partes e uma amalgama entre o ético, o estético e o político), que no campo da arquitetura é um ato de caráter estruturante que comporta uma dimensão estética.

Assim, não se trata somente de impor uma ordem, de "organizar", de dispor as coisas segundo uma certa lógica funcional e depois lhe dar um "tratamento estético". No contexto em que estamos falando, a elaboração arquitetônica consiste na configuração do vazio. Configuração do vazio pelas suas bordas, numa montagem, numa estruturação, que significa se ocupar de modelar alguma coisa que não é, necessariamente, nem interior nem exterior, senão tão somente, e precisamente, uma borda. Ato que é comandado pela intencionalidade estética (que está articulada ao desejo) e que deve se sobrepor à demanda, isto é, à funcionalidade. A arquitetura constrói uma separação e trata da luz. O corte tem sido sempre um dos mecanismos tradicionais para a determinação da relação sólido-vazio na arquitetura. Se a planta é o lugar onde tradicionalmente se determina a ordem da composição (mediante a "disposição" das funções), o corte é o mecanismo pelo qual se canaliza o desejo, mediante o tratamento do espaço e sua qualificação através do manejo da luz e das alturas, possibilitando distintas formas de sermos afetados.

A psicanálise nos indica que o significante não guarda uma correspondência com a coisa representada, nem mantém uma relação referencial. O "das ding" (que Freud indica em "Projeto de uma psicologia para neurólogos", de 1895, e Lacan retoma no Seminário VII, na "Ètica da Psicanálise", em 1959-60) "a coisa", paradoxalmente, é o que não se articula ao significante, é o vazio fundamental, condição de possibilidade de toda produção significante.

A arquitetura está intimamente relacionada à constituição desse vazio, tal vez parente desse "das ding". E Lacan nos diz também que a arquitetura primitiva pode ser definida como algo estruturado ao redor do vazio, e que reencontrar o vazio sagrado está na base de toda arquitetura.

A casa é um exemplo da corporização desse vazio e ela está ligada ao desejo. É o vazio que estrutura todos os espaços. Na arquitetura primitiva, do que se tratava era de traçar a fronteira entre um interior e um exterior; é o caso do monumento, a pirâmide, por exemplo. Depois, na modernidade, há uma permeabilidade dessa fronteira através da transparência. Hoje, buscamos incorporar, além disso, a continuidade topológica, uma diluição da condição interior-exterior mediante a captura de espaço através de deformações (dobras) que possibilitam diferenciação, sem perder a continuidade.

Vazio dos espaços públicos na cidade, vazio dos interiores; vazio dos pátios: "pátio, cielo encauzado, el pátio es el declive por el cual se derrama el cielo en la casa", diz Jorge Luis Borges.

Assim, do que se trata é de configurar esse vazio como o oleiro que o modela configurando-o com o vaso; o vazio pulsa. È a alma da arquitetura. O vazio é essa região separada do cheio por uma fronteira que não cessa de ser perfurada.

Hoje, a materialização do vazio põe em jogo outras geometrias. Em particular, a geometria topológica pode nos permitir passar do espaço euclidiano para um espaço topológico, onde as relações de continuidade interior-exterior se colocam de uma nova forma, possibilitando alternativas mais nuançadas de articulação das relações objeto-cidade, intimidade-exposição, transparência-opacidade, público-privado, etc. De acordo com Jean-Michel Vapperau, é necessário diferenciar entre o vazio e o efeito de espaço, no sentido da necessidade da introdução de um vazio que não é euclidiano senão topológico (como lugar); um vazio que não se mede. De acordo com ele, topologicamente existem duas formas de estruturação espacial: o enlaçamento e o nó. O laço opera sobre a base da oposição cheio-vazio, exterior-interior, figura-fundo, centro-periferia, etc. O nó tende a fazer desaparecer estas oposições permitindo espaços policêntricos, a-hierárquicos, dobrados, redes ou rizomas, possibilitando composições de coerência diferenciada e variação nas intensidades, estruturadas segundo uma topologia conectiva dentro de um campo coerente.

No domínio da arquitetura, o advento dos sistemas de desenho assistidos por computador tornou a distinção entre geometrias simples e complexas, insustentável. Geometrias simples, retilíneas e topologias curvas são agora vistas como pontos de uma escala corrediça de complexidades, mais do que como tipos fundamentalmente diferentes de formas. Em muitos designs contemporâneos, novas geometrias e outras mais familiares, são fusionadas dentro de uma continuidade espacial. Isto tudo determina uma nova condição onde predominam deformações e heterogeneidades que questionam a espacialidade estática, a homogeneidade de magnitudes e a constância da forma no tempo, que no seu momento caracterizaram os métodos de composição tradicionais.

Toda vez que arquiteto e cliente se aventuram no projeto, o desejo inconsciente se apropria do mesmo. Por isso a função do arquiteto excede a de uma profissão para se constituir em intérprete do desejo do outro. Aqui se diferencia do psicanalista enquanto intérprete do desejo do Outro (todo o campo significante, lugar da estrutura da linguagem), que é o próprio da experiência analítica.

O arquiteto, projetando desde o lugar do desejo, tem a sua função emparelhada com a arte, e neste sentido o projetar implica uma aventura que o coloca perante o insondável do desejo. Esse abismo próprio do desejo transparece de múltiplas formas ligadas a uma tensão interna, seja na angústia deslocada aos detalhes de ordem técnica, seja numa certa impossibilidade de concluir, seja numa forma de insatisfação (nunca o projeto corresponde "totalmente" ao desejado ou imaginado).

A psicanálise nos alerta quanto à ética, quando, frente às determinações de todo tipo (econômicas, políticas, sociais, culturais), o ato projetual deve implicar numa posição ética que em termos gerais podemos resumi-la assim: "é necessário fazer o que deve ser feito". Mas este "dever" não é da ordem da moral ou do direito. È um dever no qual se coloca permanentemente em jogo esse "além da demanda", isto é, o desejo no ato projetual. Por isso, do que se trata num projeto arquitetônico ou urbanístico não é de agradar como maneira de sedução ou harmonia; em todo caso, não é essa a questão fundamental. Trata-se de fazer o que deve ser feito desde o ponto de vista das articulações entre ética, estética e política.

A estética é o que se constitui sempre em desafio; o desafio da estética, que está ligado à produção do novo. "Estese", palavra grega que significa sensação, de onde se origina o vocábulo estética, se refere ao que produz laço, ao que permite, juntos, sentirmos alguma coisa (emoção estética por exemplo).

Podemos dizer que a ética de um arquiteto, no sentido em que estamos falando aqui, está intimamente relacionada com a sua estética e tem a ver com esse intangível que é o que transparece da articulação que faz entre projeto (dessin) e as intenções (dessein) para as quais aponta.

Jorge Mario Jáuregui

Trabalho apresentado no I Congresso Internacional de Psicanálise e Interseções-Arquitetura:"Luz e Metáfora: Um Olhar Sobre o Espaço e Significados", Porto Alegre, 23 de Maio de 2002