Alvaro
Siza |
O "Dispositivo Siza" |
Escola Superior de Educação de Setúbal
- Patio Interior, Portugal
Uma visita a Portugal e Espanha permitiu-me visualizar, simultaneamente,
uma parte significativa do trabalho realizado por Álvaro Siza nestes dois
países, e, como conseqüência, fazer algumas pontuações sobre sua obra.
Siza é sem dúvida um dos mais marcantes mestres contemporâneos, uma presença
fundamental no cenário internacional pela consistência do seu trabalho,
que tem uma especial significação para nós latino-americanos, que mantemos
com a Península Ibérica relação de atração e rejeição segundo as diferentes
perspectivas históricas e os "humores" em que se coloque a observação
dos fatos.
Siza reconhece que, no momento que entrou na Faculdade, a influência da
arquitetura Sul-americana, e, em particular, da brasileira, era muito
importante na época. Quando a informação sobre a América do Sul invadiu
a Europa, foram realizadas várias publicações sobre a arquitetura de Oscar
Niemeyer e de Lucio Costa convenientes com a segunda influência de Le
Corbusier, também através do Brasil. Nesse momento circulavam livros simultaneamente
sobre o Brasil, e sobre Gropius, Neutra e Le Corbusier. Ele comenta que
quando estava no 4o período chegaram ao Porto uma série de escritos de
Bruno Zevi e junto com ele o organicismo (Alvar Aalto, Frank Lloyd Wright,
etc.); revela que naquela época, apesar das dificuldades, circulava na
Faculdade do Porto bastante informação. Quando ele se forma, passa dois
anos trabalhando no escritório de Fernando Távora adquirindo experiência
projetual direta e o resto da informação sobre o debate cultural da época.
Desde o início das suas atividades profissionais Siza entendeu a arquitetura
na sua globalidade, como uma questão não de dicotomia entre arquitetura
artística ou não-artística, senão como a consideração conjunta de todos
os problemas que intervêm na materialização da imagem arquitetônica, isto
é, o estabelecimento de relações com a paisagem e com a cidade, com a
paisagem urbana ou natural, incluídos os problemas existenciais e construtivos.
Mais tarde, através de Nuno Portas toma contato com os arquitetos espanhóis,
em Barcelona. Por meio de um grupo que se denominava "Pequeños Congresos
de Arquitectura", conhece Oriol Bohigas, Rafael Moneo, Oscar Tusquets,
Ricardo Bofill e outros. E através de Barcelona, os contatos se estendem
a Itália, com Vittorio Gregotti, Gino Valle, Aldo Rossi e também Mario
Botta. Este foi, portanto, um momento de muita mobilização, que precedeu
a internacionalização do debate. Mas houve um aprofundamento nas raízes
da Arquitetura Portuguesa, como passo prévio a esses debates.
Em
relação com a forma de abordagem de cada projeto, Siza parte sempre da
busca da solução para um determinado contexto, atendendo a esse contexto,
ao invés de aplicar tipologias seguras, e por isso, acaba sempre por produzir
uma certa renovação do insólito.
Desde
o início dos seus trabalhos ele mantém um interesse enorme pela questão
artesanal, chegando a intercambiar critérios construtivos com os mestres
de grande qualidade que havia naquele momento. O método para Siza é necessariamente
a comparação e a análise de tudo que se faz. Isto implica o que Lê Corbusier
chama "la recherche patiente", que para Siza muitas vezes é "impaciente".
Ele considera que não se pode fazer arquitetura sem muito trabalho, esforço
e concentração (coisa que na nossa profissão é cada vez mais difícil,
pela dispersão inevitável da realização de vários trabalhos ao mesmo tempo,
às vezes, inclusive, em vários países diferentes). Neste sentido, o tempo
necessário de pesquisa e constante concentração é muito afetado, inclusive
pela necessidade de se dedicar a resolver pesados aspectos burocráticos
e técnicos, diz Siza.
Edificio para a Sub-Prefeitura de Rosario,
Pátio de acesso,
Hall de espera, Rosario, Argentina
Em
alguns países existe a exigência de projetar em prazos curtíssimos, diz
Siza, o que torna impossível chegar a um resultado maduro, provocando
mil problemas durante a construção, evidentemente.
Em
relação com o trabalho de Alvar Aalto, o encontro com as suas obras é
de uma impressão tremenda, de total encantamento, de permanente descobrimento
das coisas que Aalto encontra. Sua capacidade de captar o que é necessário
fazer em cada momento e em determinado lugar; o poder de adaptação, seu
realismo dentro de uma permanente exigência de espiritualidade, de poesia.
Neste sentido, a obra de Aalto é bem diferente de outro mestre moderno
(da escola de Amsterdam), a arquitetura de J.J.P. Oud, construída num
meio mais desenvolvido, e, por isso, mais conformista; uma arquitetura
de grande rigor técnico, mas pouco surpreendente. Oud realizou basicamente
os mesmos programas de residências no mesmo país com a mesma compreensão
dos processos produtivos, mas sendo uma obra de grande qualidade não tem,
evidentemente, a aventura e a abertura de Alvar Aalto, diz Siza.
Sua
arquitetura está relacionada com uma certa previa matriz-definição que
vem de muitas coisas, em particular, de um contexto entendido sempre como
algo realmente complexo. Ele indaga-se "que coisa é o que vai construir
esta obra?", "que momento?", "que força interior de programa?", e ao mesmo
tempo atua a concentração no sentido de uma certa "solitude" do ato projetual,
de qualquer maneira sempre apoiado num contexto concreto. E estão também
as influências, que não aparecem da mesma forma em todas as obras.
Mas
cada projeto envolve ema certa insegurança, diz Siza, não de método senão
de forma. Existe sempre um certo sofrimento e uma certa dúvida. As vezes
o risco é tão grande, o temor de piorar o lugar; a falta de experiência
anterior sobre um determinado tema (por ex. os museus, com todos os problemas
relativos ao tipo de luz especial e ao "ambiente").
Siza
diz que quando se realiza algo pela primeira vez nós somos, inevitavelmente,
um pouco irresponsáveis, mas existe um grande entusiasmo, e que, normalmente,
a segunda obra é pior porque está mais carregada ainda desse entusiasmo
e crê estar convencida de já possuir experiência. Mas como ela resulta
pior, então nós descobrimos que esta sensação de segurança é um erro.
Edificio para a Sub-Prefeitura de Rosario,
Vista acesso e
detalhe do interior
Em
relação ao uso dos muros na sua arquitetura, Siza diz que o muro está
fortemente ligado a arquitetura porque é aquilo que oculta coisas na cidade.
Um muro serve para delimitar espaço e pode, inclusive, ser de vidro; serve
para criar intimidade, um microclima, ou uma relação com o contexto onde
se trabalha.
Cada
cidade sugere para Siza uma espécie de "ocasião de arquitetura". Uma cidade
que vive, que está viva (em transformação, não "museizada") é natural
para ele que sugira a introdução de novos conceitos para pensar a relação
permanência-transformação. O que é sempre necessário, é que haja qualidade
e rigor no que se faz, e em termos de ambiente urbano, na justiça das
discórdias. A unidade, por sua vez, não se expressa toda em relação ao
visível e imediato, senão que vem ao mesmo tempo da força transformadora
implícita em cada programa e em cada momento.
Para
Siza cada edifício é parte de um todo e o mais difícil é compreender que
há uma grande quantidade de relações dentro de uma área, que pode ser
muito grande, incluindo uma boa parte de entorno, e que um edifício tem
que poder assimila-las. O que acontece no entorno é inevitavelmente referência
para o que acontece no edifício. O todo é fortíssimo e para saber o que
deve ser feito é necessário entender todo o resto. Por isso, ao trabalhar
projetando nós tomamos decisões e determina que algo deve estar em tal
lugar; imediatamente vamos de novo ao lugar e verificamos se é realmente
assim, confrontando-o com a experiência do lugar, com coisas que acontecem
até e no seu entorno.
Para
Siza um bom edifício não se faz em qualquer sítio e hoje ainda há diferenças
nos meios de produção, na tecnologia, na mão de obra, etc. Se no futuro
isto vai acabar ou vai sair reforçado não é possível saber. Mas um problema
atual é que o aprofundamento do estudo no decorrer da obra começa a ser
impossível. Uma máquina muito complexa faz com que seja impossível mudar
uma peça porque isso tem implicações muito grandes em tudo: custos, prazos,
novos entendimentos de relacionamentos a serem feitos, etc. Mas 30 anos
atrás isto não era assim, muita coisa se resolvia na obra, era modificada
em obra. O problema é que nunca se chega à percepção total da obra; nem
mesmo com perspectivas, desenhos e maquetes. A experiência na obra permite
ir mais longe, oferece uma informação mais conseqüente. Hoje, verifica-se
uma generalização dos modos de produção, da utilização de técnicas construtivas
cada vez mais internacionalizadas, e empregam-se muitos materiais industrializados,
portanto, há cada vez menos dependência dos materiais naturais locais,
e isto tem conseqüências na arquitetura.
A
relação do arquiteto com o meio ambiente implicará daquí para a frente
uma viragem muito complicada e desequilibrada, porque há países onde estas
preocupações não poderão vingar. Ao mesmo tempo, é necessário que a arquitetura
possua uma legibilidade da continuidade com a natureza.
O
que se faz depende sempre muito do contexto para Siza é impossível participar
de um trabalho onde as condições não são favoráveis à sua realização.
Por outro lado, a imaginação, para ele, não cai do céu, depende de contatos
e pode depender, mais, ou menos, do "eu", e mais, ou menos, dos "outros".
E mesmo em relação à própria pessoa, a cada arquiteto, as dores variam
(tanto do "eu" quanto do "outro"). Em relação com as influências sobre
a produção de idéias projetuais, acontece, muitas vezes, uma transversalidade
entre disciplinas; por exemplo, pode acontecer que o pensamento de um
objeto (uma cadeira, um relógio, etc.) quando concentrado numa idéia forte,
estabeleça correspondências na maneira como os materiais ou as varias
peças se articulam, determinado correlações entre varias coisas, o que
pode por sua vez influenciar a arquitetura.
Le Corbusier dizia que às vezes, quando
um projeto entrava num beco sem saída, começava a desenhar e a pintar,
fazendo algo que não tinha nada a ver com o projeto (fazia uma paisagem,
por exemplo) e aí, de repente, aparecia a "teclazinha" para desbloquear
o projeto.
Em
relação com os instrumentos de trabalho no campo da arquitetura, agora
que o uso do computador está generalizado, há uma possibilidade de ampliação
das condições de produção de projetos e também ajuda a pensar de outra
forma as questões, mas, ao mesmo tempo, pode constituir uma grande limitação,
como uma espécie de funil. No computador há sem dúvida esse rigor no clima
de trabalho; tudo tem que ser definido, o que estabelece uma indiferenciação
entre anteprojeto e projeto, por exemplo. Antes, a idéia ia nascendo e
admitia fases; com o computador não se podem deixar indefinições, não
é possível esse desenvolvimento gradual de uma idéia.
Para
Siza, um desenho é uma tentativa muito rigorosa de captar em todos os
seus matizes um momento específico de uma realidade sempre em transformação.
Por isso, o croqui ("esquisse"), com sua característica de definição-indefinição,
é para ele o instrumento privilegiado de um pensamento-registro, e está
relacionado com um ato cultural que compreende a construção e a destruição.
Nesse processo de transformação, vão sendo deixadas marcas (no espaço
e nas pessoas) que se incorporam por sua vez ao processo de transformação
geral social onde vão sendo criadas imagens, que adquirem um sentido no
seu encadeamento em relação com imagens geradas pelos outros.
O
começo do projeto é sempre um croquis feito a partir da visita ao local,
ou de uma descrição dele, e inclui sempre tudo o que já se fez previamente,
e, inclusive, o que outros já desenharam. E, sempre, um croquis feito
em condições de concentração (sem interferência) e tem a ver com a formulação
e reformulação do desejo (o próprio e o proveniente da interpretação desejo
dos outro).
Neste
sentido, a tradição, mais do que algo a ser respeitado, constitui nele
um desafio à inovação. Uma tradição é feita de enxertos sucessivos que
é necessário observar atentamente, e os caminhos possíveis nunca são claros
pois um arquiteto se movimenta sempre entre conflitos e compromissos,
mas seu ato implica, também, e sempre, em (ar)riscar. O projeto implica
redescobrir a mágica estranheza das coisas, e, por isso, é uma forma de
conhecimento que não se baseia numa trama estática de verdades, senão
num processo social.
A
relação com o lugar é uma relação crítica e envolve uma especial
sensibilidade pelo modelado do terreno, que inclui sempre um tratamento
específico dos limites como fator de inclusão e exclusão, simultaneamente.
Por isso, qualquer construção é pré-determinada, tanto topográfica, quanto
temporalmente, entre umas condições concretas e específicas de "terreno",
e um momento histórico particular.
O
processo projetual envolve sempre a transformação do pensamento, tanto
dos destinatários dos projetos, quanto do próprio arquiteto. Um projeto
envolve para ele sempre uma dimensão "arqueológica", isto é, a forma como
se inscreve uma obra num lugar concreto. Implica uma concepção da relação
do novo com o preexistente, que o obriga a intervir sem destruir (mas
transformando) o caráter do que havia antes, uma compreensão existencial
da relação forma-espaço, através de um leque de referências sutis e de
metáforas que se estabelecem entre a situação previa e a incorporação
do projeto. Mas há que diferenciar claramente entre razões de contexto,
e atitudes apenas sentimentais. Uma interpretação do projeto como ato
de transformação (transformação do repertório lingüístico do racionalismo)
e a função do desenho (em particular, do croquis) como instrumento de
configuração essencial de uma intenção inicial que atua como desafio ao
longo de todo o processo projetual, algo que o desenho nas suas sucessivas
etapas de "detalhamento" deverá sempre não perder de vista.
Siza
privilegia nas suas intervenções as relações urbanas entre a nova situação
a ser provocada e a preexistente, rejeitando qualquer via de integração
mimética ao mesmo tempo em que mantém um vínculo com a atitude racionalista
através da criação de rupturas e oposições, tanto com as condições de
contexto existentes, quanto de linguagem.
Quinta de Santo Ovidio
Vai
progressivamente sedimentando e decantando seu repertório lingüístico
centrando sua atenção na disposição dos percursos marcados por continuidades
e inflexões de muros, pelo tratamento da relação interior-exterior e pela
ênfase nas variações espaciais nas quais relações visuais-lumínicas de
uma ordem variada (especialmente altimétricas, horizontais, verticais
e diagonais), atuam como qualificadores do espaço interior.
O
enfrentamento de específicas condições de lugar, contexto e programa (sempre
a ser redefinidos) através da análise traduzida num croquis, antes de
entrar em questões como a superfície edificável, etc, determinam o início
do processo de desenho. O croquis é o meio pelo qual uma visualização
gradual vai emergindo, traduzindo questões de valor e de dados diretos
da experiência (que estruturas pesadas e complexas de produção "metodológica",
hoje cada vez mais impossibilitam, tipo as "estruturas produtivas" das
"grandes empresas de produção de projetos").
Uma
questão básica é achar a maneira de unir elementos distintos (as cidades
se compõem de fragmentos muito díspares).
Em
relação com a resposta à topografia, Siza presta muita atenção a elementos
tais como os muros limítrofes das propriedades, a variedade de usos existentes,
a coexistência de classes diferentes de objetos e à história da ocupação
de um lugar.
Em
relação ao manejo das superfícies externas, elas são usadas para se vincular
com uma gama plural de reações perante o contexto; as variações atuam
como dispositivos para conseguir a acomodação às distintas condições de
inserção.
Segundo
Bernard Huet, Siza, como Barragán, é um dos poucos arquitetos modernos
capaz de criar um "lugar" arquitetônico específico.
Há
uma idéia (atitude) de "composição" (ver Corona M.) como modo de estruturação
do projeto, mesmo que as partes compostas provenham da tradição moderna.
A organização funcional seguindo uma definição de volumes edificados é
uma forma de projetar que coloca as possibilidades expressivas em relação
direta com o manejo das alterações e do ajuste proporcional entre as partes.
A montagem de uma estrutura através da articulação de partes adquire expressividade
quando a elementariedade se acentua na definição da forma e no modo "natural"
de aproximação e colocação frente a ela para sua apreciação fenomenológica
(com os sentidos).
Escola Superior de Educação de Setúbal
- Vista Exterior, Portugal
Jorge
Mario Jáuregui.
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