O desafio da sustentabilidade

 

o buraco é muito mais em cima...

 


Falar de sustentabilidade hoje, significa analisar o cruzamento entre as variáveis físicas (ambientais, infra-estruturais e urbanísticas), sociais (econômicas, culturais e existenciais), ecológicas (ecológica mental, ecologia social, ecologia do meio ambiente) e as questões relativas à segurança do cidadão desde a prespectiva das problemáticas do sujeito. Portanto, trata-se de um conjunto de variáveis, todas elas interconectadas demandando por esta razão uma série de ações coordenadas.

Nas atuais condições do planeta, sustentabilidade implica ao mesmo tempo rever noções tais como “desenvolvimento”, “modernização”, “mercado mundial” e "bens de consumo" . Por este motivo, não é uma questão apenas de “relação com a natureza” mas principalmente de manejo inteligente tanto dos recursos naturais quanto dos "recursos humanos", envolvendo uma compreensão do território na sua condição ético-produtiva, estreitamente ligada à noção de sociedade.

Sustentabilidade, assim, implica uma abordagem que incluiu tanto a performance energética a partir de uma cartografia climática, quanto a avaliação das conseqüências econômicas e sócio-culturais do uso sustentável dos recursos, envolvendo a noção de desenvolvimento durável. Hoje é necessário formular uma verdadeira estratégia global no que se refere à redefinição da relação homem-ambiente.
Mas o ideal de um desenvolvimento durável não se define somente sobre o terreno do meio ambiente. Esta noção demanda uma reflexão em torno de valores sociais e culturais, inevitavelmente colocados em questão pelas mutações tecnológicas e pelo desenvolvimento capitalista na sua fase atual.

A arquitetura e o urbanismo do século XXI deveriam estar baseados na consideração do ser humano em primeiro lugar, levando em conta que estamos construindo num mundo frágil. Por isso, desde a nossa disciplina sustentabilidade tem a ver com a história da cidade e por esta razão é necessário conhecer em detalhe cada lugar de intervenção e seu entorno. Entender a importância dos lugares constituídos no processo de acumulação e sedimentação, que é um dos fatores pelos quais a cidade histórica resulta tão cativante. O fato de que ela não foi projetada, mas construída sobre inúmeras histórias que é necessário analisar e compreender.

Implica colocar hoje em primeiro plano, enfrentando os desequilibrios socio-ambientais de forte impacto negativo, o problema da redução das emissões tóxicas em todas as áreas, maximizar a utilização de energias renováveis, desenvolver novos modos de transporte coletivo, reciclar materiais, edifícios e dejetos, e conceber novas formas de organização da ocupação do território, mais harmoniosas e generosas. Oferecendo novas condições de relação com o meio ambiente adaptado a cada condição de contexto específica, pensando as edificações e a arquitetura em função da facilidade de adequação às mudanças, da reutilização de materiais, e da regulagem não dispendiosa da relação com as condicionantes climáticas. Exige diminuir a utilização de materiais derivados do uso do petróleo e atentar para o conteúdo energético deles, priorizando o uso daqueles que menos consomem energia. Isto implica levar em conta três fatores interconectados: se o material em questão pode ser reciclado, qual é o seu valor ecológico, e qual o seu conteúdo energético, considerando o ciclo completo de vida dos materiais.

Hoje há uma demanda crescente por um sistema de controle (de materiais e ações) que indique o impacto ambiental relativo de ambos. Há desta forma, uma relação direta com a nossa responsabilidade quanto à eleição desses materiais, dos acabamentos e de seu modo de emprego. Existem tabelas que indicam o conteúdo energético de cada um, representando um bom auxílio na hora de ter que escolhê-los. Por este motivo, em cada condição climática específica é necessário consultar o mapa bioambiental correspondente, para orientar um design eficiente e ao mesmo tempo moderado no uso de materiais, energia e espaço.

Como é sabido, as áreas metropolitanas são responsáveis pela geração do efeito de “ilha de calor”, que implica um aumento de 3 a 4 ºC, pois os edifícios têm uma alta massa térmica que absorve a radiação do sol e a irradia durante muitas horas, impedindo por exemplo, perceber o fresco da noite. Por isso a eco-concepção implica um caminho preventivo capaz de permitir reduzir os impactos negativos sobre o entorno, considerando os ciclos de vida dos materiais e produtos como fonte componente dos projetos. Assim, pressupõe formular uma verdadeira estratégia global frente ao entorno. Hoje não é suficiente defender “o verde”, é necessário passar à ação concreta mas com uma nova concepção da relação homem-natureza, não predatória.
Na área específica do urbano-arquitetônico-ambiental, a eco-concepção pressupõe construir bio-climaticamente, isto é, de acordo com as condições da cartografia climática, o que, de acordo com os estandares europeus implica um consumo de 65kwh/m² para as regiões frias, e de 40kwh/m² para as regiões meridionais.

Atualmente, os standars térmicos estipulam consumos da ordem de 85 kwh/m² para a calefação, refrigeração, água quente, ventilação e iluminação.
Pensar em edificações de baixo consumo energético tornou-se uma preocupação prioritária. Respeitar a terra, a água, o ar e a luz é um imperativo. Utilizar a energia e a luz do sol, isolar, ventilar, usar a água da chuva, são alguns dos ingredientes elementares de construções agradáveis de serem utilizadas em todas as estações e para todas as funções.
Pensar a cidade e a arquitetura recuperando e protegendo o meio natural, de acordo com os valores e princípios éticos de cada sociedade, são exigências fundamentais da vida civilizada.

Construir, habitar e desenvolver uma vida de interação social compreende um ciclo que incluiu a seleção e fabricação de materiais, a definição de processos construtivos e a posterior possibilidade de desmontagem e reaproveitamento do construído.

Cada uma das variáveis envolvidas no design arquitetônico e urbanístico relativos ao uso da água da chuva, à captação de energia solar e eólica, à climatização dos ambientes, ao tratamento e reciclagem dos resíduos, tem relação com a criação de um ambiente estimulante para a vida, envolvendo um uso responsável dos recursos. Existem numerosas possibilidades, técnicas e econômicas, de acordo com as circunstâncias das demandas e com os nossos princípios éticos, para seu manejo. Ética que exige redirecionar o atual rumo da urbanização que esquece os direitos da maioria e propõe privilégios para um grupo crescente, mas elitista e autista de cidadãos. Os bairros fechados, os condomínios amuralhados e as favelas, são um sintoma de um planeta que não quer admitir matizes, e onde riqueza e pobreza se confrontam numa tensão crescente.

O sprawl infinito de monstruosos subúrbios de casas individuais com “jardinzinhos”, shopping centers e "bairros country", localizados nas margens da maioria das metrópoles atuais, caracterizam um estilo de vida que resulta num alto consumo de superfície e de água, e que deve ser seriamente questionado e redirecionado.
A exigência ética se estende também, e especialmente, ao campo da atividade empresarial, demando uma ética social para as intervenções no ambiente construído neste novo século. Por tanto, não é meramente uma questão quantitativa, de cálculo da relação “custo - benefício”, mas sim, precisamente, do marco da nossa atuação, da nossa interferência positiva para a obtenção de um mundo mais equilibrado e mais justo em todos os aspectos, que não implique benefícios para poucos e sacrifícios para a maioria.

Especialmente nas megacidades, estejam elas localizadas em países “desenvolvidos”, em países "em desenvolvimento", ou em paises pobres, a questão da sustentabilidade se torna um tema crucial. É imprescindível uma correção de ótica e de rumos capaz de reduzir em primeiro termo a desigualdade e a pobreza, e aprofundar a agenda de reformas necessárias, democratizar o acesso a bens, serviços e infraestruturas promovendo a articulação entre os sectores público, privado e a sociedade civil, dialogando em torno de estratégias compartidas para enfrentar os problemas tanto no curto, quanto no médio e longo prazos.
A questão da transformação de subúrbios em cemitérios industriais, o déficit de cidade, urbanidade e espaço público, a insuficiência de serviços públicos, a ineficiência do sistema de transportes, a inadequação da política habitacional, e a contaminação do meio ambiente, são todos problemas interrelacionados que implicam desafios cujas escalas perpassam as fronteiras burocráticas.

Está claro que no nível macro é necessário realizar investimentos na área da eficiência energética para redução da emissão de gases estufa, e dos níveis de consumo. Neste sentido, propostas como a de levar em conta a poluição per capita de cada país, pode constituir um novo referente internacional. E ao mesmo tempo, estabelecer estímulos para “desmate evitado”, como forma de controle do desflorestamento a nível planetário.

No nível micro, e no do âmbito individual, se trata de conscientizar os consumidores para poder reduzir (o consumo) de energia desnecessária.

Neste marco, o desafio da sustentabilidade no plano do urbanístico-arquitetônico exige intervir na dicotomia entre o planejamento urbano estratégico e a produção da cidade real (a lógica de mercado pura e dura). Slogans recentes sobre “crescimento inteligente” e “uso inteligente da água”, escondem o fato de que a especulação imobiliária continua a expandir a cidade e os subúrbios segundo o modelo nada inteligente, e ambientalmente ineficiente, que prejudica o presente e o futuro das grandes cidades. A urbanização descontrolada desorganiza ecossistemas e transforma paisagens inteiras (a exemplo da Barra da Tijuca no Rio de Janeiro) de maneira negativa.

Sabemos que os efeitos de políticas macroeconômicas revertem diretamente sobre a configuração do território e são responsáveis pela contribuição para o aquecimento global, e responsáveis principais pelo déficit infraestrutural e os fenômenos de suburbanização, a carência de equipamentos comunitários, a ruptura e degradação morfológica do tecido urbano, e a desagregação social.


Lavanderia comunitária em Mumbai, Índia

Uma política de desenvolvimento sustentável implica assim, no que se refere à nossa área de atuação (cidade, edifício, paisagem), que a gestão dos serviços e bens públicos, incluindo aí o meio ambiente como questão central, não suponha uma privatização do poder político, nem uma substituição da lógica política pela lógica empresarial, nem muito menos uma degradação do interesse social pelo interesse privado.

Na sua perspectiva mais abrangente, as ações sobre a superfície do planeta e sua envolvente protetora adquiriram repentinamente dramática atualidade ao por em risco a própria vida no planeta.

Se desde um ponto de vista “evolutivo” podem ser assinalados avanços científicos e tecnológicos magníficos, por outro lado o uso destas conquistas evidenciam um claro déficit de consciência social e responsabilidade ambiental no manejo dos recursos.

Isto nos obriga a revisar as relações estabelecidas entre logos e physis e entre teoria e prática, numa nova perspectiva.

Segundo diferentes estudos, a fabricação de materiais junto com a atividade construtiva provocam a metade das emissões contaminantes da atmosfera, e os edifícios consomem 60% dos materiais extraídos da Terra.

Os novos paradigmas de atuação profissional no campo da arquitetura e do urbanismo implicam considerar a inter-relação do eco-sistema sobre o qual vai se interferir, o equacionamento de produção, utilização e conservação dos materiais utilizados, a reutilização de materiais existentes ou os que vão ser produzidos em função das ações programadas, a redução da produção de resíduos, e a redução dos deslocamentos.

A sustentabilidade do ambiente construído exige pensar as relações entre o local e o global, entre os efeitos geograficamente situados e a adoção de referentes gerais, no mesmo ato de decisão.

Por esta razão é necessário repensar as relações entre ecologia e economia indo além da limitada consideração da relação custo-benefício na análise de alternativas de ação. Não é só uma questão quantativista (quanto temos e quanto custa) senão de uma complexa interação de fatores do que se trata. E muitos destes fatores fundamentais não são “quantificáveis”. Muitas decisões exigem uma formação e uma visão mais ampla capaz de levar em conta ao mesmo tempo o material, o imaterial, o objetivo, o subjetivo e o tempo, ao julgar possibilidades de diferentes ações.

Fatores tais como cultura, sociedade, território, usos sociais, paisagem, materiais do lugar e consumo energético, junto com visão e vontade política, hábitos de consumo, iniciativa empresarial e características organizativas da sociedade, devem ser considerados nas suas interseções levando em conta diferentes temporalidades quando se analisam os processos de transformação geo-bio-ambientais nos quais irá se interferir.

Nas últimas décadas, obrigados pelas manifestações físicas negativas das transformações humanas operadas sobre a superfície do planeta, temos sido obrigados a estender a noção de eco-sistema a outra escala. Claramente, a uma escala planetária, já que hoje nosso eco-sistema é o planeta, afetado pelo efeito multiplicador de ações isoladas desenvolvidas sem levar em conta sua interatividade.

Desde o ponto de vista da responsabilidade meio ambiental, a arquitetura e o urbanismo, enquanto trabalho social, devem estar dirigidos à integração dos objetos no contexto, ao melhoramento da qualidade de vida dos usuários desde o ponto de vista do conforto térmico, e a incidir na redução da demanda de energia convencional bem como no aproveitamento de fontes energéticas alternativas. Portanto, o design arquitetônico e urbanístico contemporâneo deve ser o campo de gestão e produção de objetos e espaços fundamentados nos princípios do bioclimatismo, com uma expressão formal-tecnológica adequada a cada contexto. A ecologia neste sentido, é aqui entendida não como uma finalidade senão como um meio inteligente de lidar com os recursos.

Hoje as relações entre a sociedade humana e o “meio ambiente” estão transformando irreversivelmente nossos paradigmas.

A reciclagem intelectual utilizando analogias, metáforas e adaptações é tão importante para a produção de idéias, quanto a reciclagem de objetos materiais o é para a sobrevivência no planeta.

A questão é: como fazer confluir de maneira sustentável a infinita ação de bilhões de seres humanos sobre a superfície do planeta, não só sem devastá-lo ainda mais, senão garantindo boa vida para todos?


Projeto para o Espaço de Encontro das Inteligências / Mangueira-UERJ - Projeto Metropolitano, Rio de Janeiro, Brasil

Jorge Mario Jáuregui