Entropia A peça Entropia apresenta uma reflexão sobre o mundo contemporâneo justamente no momento em que o planeta lida com sérios problemas ambientais. O titulo do espetáculo antecipa a cena. Na física, entropia é a medida da quantidade de desordem num determinado sistema. No palco, personagens reúnem-se em torno da “cidade-ideal”, ora para inventá-la num lugar utópico, ora para concretizá-la no real, apesar das adversidades. Em alguns momentos, cidades literárias, criadas pela imaginação de escritores como José Saramago, Gabriel García Márquez e Ítalo Calvino, são citadas. Perguntas fundamentais surgem a partir do texto de Rodrigo Nogueira, encenado pelo diretor Marcelo Mello: como conciliar a utopia e a realidade? Como ser individual sem ferir o coletivo? (Centro Cultural Banco do Brasil). A nossa entropia O ponto de partida foi uma pergunta: por onde você começaria a construir uma cidade? Tomamos uma estrada longa, cheia de curvas, bifurcações, conexões, acidentes, desvios. O conteúdo deste projeto se mostrou vastíssimo. Envolvia as mais variadas áreas do saber. Falávamos de utopias, do pensamento de uma cidade ideal. A utopia de Thomas Morus foi leitura obrigatória, mas não só. A República de Platão, A Cidade do Sol de Tommaso Campanella, O Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, 1984 de George Orwell também. Utopias e distopias. Charles Fourier e o Falanstério, André Godin e o Familistério, Lê Corbusier, Oscar Niemeyer, Lewis Mumford e outros tantos, passando por Santo Agostinho, Karl Marx, Friedrich Nietzsche. Não apenas os que pensaram ou agiram sobre a cidade, mais os que foram à frente, carregando a lanterna: Guimarães Rosa, Ítalo Calvino, Virginia Woolf, Anton Tchekhov, Antonin Artaud, Bertolt Brecht, Walter Benjamin, Van Gogh, Cézanne. Para que não nos limitássemos ao passado, pensadores contemporâneos foram fundamentais: Jean Baudrillard, Zygmunt Bauman, Marc-Augé, Michel Foucault, Michel Serres, Michel Maffesoli, Roland Barthes, Thierry Paquot, Barbara Freitag. A lista parece não te fim. Uns dizem que as utopias não interessam mais, outros que elas já foram realizadas, outros que é perigoso que elas se realizem, outros que elas precisam existir para que o homem não destrua o espaço e a si mesmo. Seria o pensamento utópico a tentativa de matar a história? De permanecer no momento congelado? Nós desejamos essa inércia? Estamos sem desejo de mudar a nossa história? Ou ainda queremos tomar as rédeas da vida? Ser senhor de mim implica em ser escravo de mim? A projeção para o futuro, hoje, aterroriza. O recuo ao passado é impossível. Devo então atracar? Sair logo? Sair do jogo? Ainda estou vivo, ainda estou aqui , este ainda é o meu mundo, esta ainda é a minha época? A criação do texto foi um grande projeto dentro do projeto. A idéia inicial de reunir sete sábios numa sala neutra para que decidissem o lugar ideal para os outros se duplicou. Agora entraria, num segundo plano, uma utopia já realizada que se encaminhava para a desordem. A reunião dos “sábios” também tendia para a desordem. Entropia. O destino de todo sistema. E nisso não está nenhum valor negativo aplicado à desordem. É a desordem que re-organiza, que leva à ação. Os dois planos possibilitam um jogo de afinidades e estranhamentos. De redundância e novo olhar. De lugar e não-lugar. Criação e memória. Gênese e apocalipse, claro e escuro, quente e frio. E um terceiro plano foi também estabelecido. O espaço para as cidades sonhadas e lembradas. Para as ruínas e as construções, para as visões apocalípticas e utópicas, para a metáfora e a realidade. Uma janela para o mundo. O pensamento e o teatro de hoje não se encaixam mais no confortável “ou”; a grande complexidade atual está no “e”. Tudo é “e” e não é. Feliz o tempo em que se podia escolher entre ser ou não ser. Hamlet não fazia idéia do que viria. Hoje temos que ser e não ser. Sair e ficar. Esquecer e lembrar. Se me perguntarem qual o ponto de chegada dessa peça, eu repito uma historinha contada durante os ensaios: o cavalo está galopando muito rápido, e o homem que cavalga parece estar indo a um lugar muito importante. Ai outro homem pergunta: “onde você está indo?” E o homem no cavalo responde:“ Não sei”. (Marcelo Mello). Desordem natural das coisas A cruz expande, o círculo protege. A guerra expande, a paz protege. Pessoas expandem, prédios protegem. A desordem expande, o ideal protege (protege?). Um jogo constante de forças contrárias. É simples e até simplista. Mas é uma definição possível para as organizações feitas de carne e pedra que conhecemos como cidade. “Entropia” busca ser reflexão e reflexo. Reflexo desse jogo de forças espelhado entre o lugar e o não-lugar, entre o individual e o coletivo. E reflexão sobre o papel das utopias urbanas nos dias de hoje. O ideal é inatingível. Mas sem ele não vivemos. Como conciliar uma busca sem resultados com as expectativas do dia a dia? Melhor. Como encontrar a felicidade vivendo no mundo da desordem? No mundo possível. Olhe em volta. Veja ao seu redor. Tome um tempo. Perceba seu lugar agora. O que você vê? O que você vê? (Rodrigo Nogueira). Diferentemente das noções de utopia e caos ancoradas na noção mítico-religiosa de uma ordem suprema e inalterável, a noção de entropia surge em um período no qual o sistema de conhecimento, entendido como sistema integrado entre o observador e o objeto, entra em crise. A desorganização crescente de todo o sistema desprovido de uma fonte de energia exterior se transfere para alem da significação termodinâmica. Também adquire uma significação teórica transcendente, pois impede a identificação entre a concepção moderna e objetiva de “sistema” e o desígnio de alcançar uma ordem inalterável por meio da razão moderna. Para o conhecimento moderno, a linguagem e a coisa empírica designada pela linguagem estão vinculadas entre si, no interior de uma única noção de sistema. A desarticulação da ordem cíclica dessa correspondência (entropia) marca a impossibilidade, para qualquer sistema (cientifico, social, artístico) de se comportar como um sistema perpetuamente ordenado. Consequentemente, o projeto de melhorar e assegurar o destino da Humanidade, através do combate contra o mal e a ignorância por meio da ciência, abala a sua própria base, pois carece de um principio de unidade cognitiva. Esta crise se amplifica e se estende até finais do século XIX, devido à impossibilidade de definir uma posição espaço-temporal exata (ou seja, em uma equação matemática) para o objeto, a partir de determinada complexidade na observação necessária. A ciência “caracterizada por seus métodos de observação” supõe uma correspondência metodológica (ou seja, “sistemática”) entre a consciência do observador e objeto de conhecimento. Agora, se o objeto não é identificável em um campo contínuo de observação, desaparece a consciência de conhecimento que encontraria sua convalidação no comportamento perpetuamente ordenado de um sistema. A entropia também interpretará a fatal desorganização cultural dos sistemas de crenças e de ideologias, que se encontram desorganizados pela criação intelectual no palco de sua transformação, que supõe uma atividade questionadora da racionalidade sistemática do conhecimento prévio. Surge o tema da incomensurabilidade da razão moderna, por não ser possível garantir, acima da intervenção contingente da “decisão teórica”, uma continuidade entre os paradigmas científicos. Estes últimos se comportam de forma análoga às sociedades, espelhando uma crise de desenvolvimento, um esgotamento de crenças e de “revoluções científicas”. (Ricardo Viscardi, tradução de Luciana Gaffrée). 01. È uma cidade igual a um sonho: tudo o que pode ser imaginado pode ser sonhado, mas mesmo o mais inesperado dos sonhos é um quebra-cabeça que esconde um desejo, ou ainda então o seu oposto, um medo. As cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seus discursos seja secreto, que as suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas, e que todas as coisas escondam uma outra coisa. | Cidades Invisíveis, Ítalo Calvin
02. Uma coisa é por idéias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil e tantas misérias... Tanta gente - da susto se saber - e nenhum se sossega: todos nascendo, crescendo, se casando, querendo colocação de emprego, comida, saúde, riqueza, ser importante, querendo chuva e negócios bons... | Guimarães Rosa
03. Pode-se queimar a biblioteca de Alexandria. Acima e além dos papiros, existem forças: podem nos tirar por um tempo a faculdade de reencontrar essas forças, não se suprimirá a energia delas. E é bom que desapareçam algumas facilidades exageradas e que certas formas caiam no esquecimento. E é justo que de tempos em tempos produzam-se cataclismos que nos incitem a retornar à natureza, isto é, a reencontrar a vida. | Antonin Artaud 04. Puxa vida! Como tudo está esquisito hoje! E ainda ontem as coisas estavam tão normais... Será que eu mudei durante a noite? Deixe eu pensar: quando eu acordei hoje de manhã, era eu mesma? Tenho quase certeza que estou lembrando que estava um pouco diferente... Mas se não for eu mesma, a pergunta seguinte é: “Então, quem sou eu?”. Esse é que é o grande mistério. | Alice no País das maravilhas. | Lewis Carrol 05. Não se imagina o perigo que ainda seria, algum dia, em alguma parte, aparecer uma coisa deveras adequada e perfeita. | Guimarães Rosa 06. Porque não nascemos como arvores que nada têm a ver com tudo isso. Ou preferes ser uma montanha. Ou um deserto. Porque não estamos simplesmente aí e contemplamos a guerra das paisagens. | Heiner Müller 07. Nós ainda não nascemos. Ainda não estamos no mundo. Ainda não existe mundo. As coisas ainda não se fizeram. A razão de ser não foi achada... | Antonin Artaud 08. Há uma poça! E eu não posso transpô-la. Todos os objetos palpáveis me abandonaram. Como transpor o abismo enorme? Unir-me de novo ao meu corpo? Para onde irei? Um machado fendeu a árvore até o cerne. Porque o raio abateu a árvore? Porque o grande ramo em flor caiu? É preciso que eu olhe as coisas de frente! Eu sei que as flores se abrem e o vento sopra, mas no mar, eu ouço sempre o embate monótono das ondas e uma besta pateia acorrentada na areia, e ela pateia, pateia, pateia... | Virginia Woolf 09. Fora: tempestades, furacões, ventos congelantes, emboscadas na estrada e perigos por toda parte. Dentro: aconchego, cordialidade, segurança, proteção. Já que, para manter o planeta inteiro seguro (de modo que não precisemos mais separar-nos do inóspito “lado de fora”), nos faltam (ou pelo menos acreditamos que nos faltem) ferramentas e matérias-primas adequadas, vamos construir, cercar e fortificar um espaço indubitavelmente nosso e de mais ninguém, um espaço em cujo interior possamos nos sentir como se fossemos os únicos e incontestáveis mestres. | Zygmunt Bauman 10. Detestamos o sofrimento, é normal. A novidade é que agora as pessoas não têm mais o direito de sofrer. Então, sofre-se em dobro. Mais que o dinheiro, a felicidade é a nova ostentação dos ricos. A felicidade virou parte da comédia social. Ninguém é feliz ou infeliz o tempo todo. A vida não se divide entre essas duas polaridades. A felicidade é um valor secundário, e é bom enfatizar isso para que não se sintam culpadas as pessoas que não chegam a ser felizes. Há dois erros básicos na forma em que encaramos a felicidade atualmente. Um é não reconhecê-la quando acontece ou considerá-la muito banal ou medíocre para acolhê-la. O segundo erro é o desejo de retê-la, como uma propriedade. Jacques Prévert tem uma frase linda sobre isso: ‘Reconheço a felicidade pelo barulho que ela faz ao sair’. | Peter Bruckner 11. O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estamos juntos. Existem duas maneiras de não sofrer: a primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte dele até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço. |Cidades Invisíveis, Ítalo Calvino Ficha Técnica
Cidades de entropia As evocadas em Entropia são livres adaptações das seguintes cidades imaginárias: Eusápia (Cidade dos Mortos 3) As Cidades Invisíveis de Ítalo Calvino Ufu Cidades Inventadas, de Ferreira Gullar Ilha da Utopia, Utopia, de Thomas Morus Atlântida, Critias, de Platão Cidade dos Cegos, Ensaio Sobre a Cegueira, de Josè Saramago Macondo, Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Márquez
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