Entrevista com Clorindo Testa

 

Torre do edifício Rocatagliata, projeto de 1920 do arquiteto italiano Mario Palanti, localizada na esquina de Santa Fé e Callao, sob cuja cúpula foi realizada a entrevista transcrita a continuação.

Numa tarde bem fria e chuvosa do mês de Julho, em Buenos Aires, nos reunimos no 10º andar do edifício da Avenida Callao 1003, numa das torres mais belas da cidade, um grupo de arquitetos para participar de um diálogo que eu propus a Clorindo Testa, um dos mais importantes arquitetos Latino-americanos da atualidade, dono de uma poética pessoal muito forte e com uma aura muito contemporânea.Tínhamos iniciado uma interlocução em santo Domingo, República Dominicana, poucos meses atrás, a partir de uma convocação que a Prefeitura daquela cidade fez a um grupo de arquitetos do Continente, entre os quais estávamos Clorindo e eu. Dando seqüência ao diálogo iniciado naquele momento e continuado em Buenos Aires, são sintetizados a seguir alguns dos tópicos abordados.

Jorge Mario Jáuregui: Em relação ao tema da ordem na arquitetura e referido especificamente à sua arquitetura, que tem sempre um traço muito jovem, um impulso realmente muito fresco (não no sentido popularesco desta expressão, que significa algo bem diferente...) senão no sentido clássico, isto é, no sentido de uma grande liberdade, de quase casuístico, mas que, como sabemos, para se conquistar a liberdade houve que passar antes pela ordem, para poder encontrar depois uma ordem livre composta. Como o senhor pensa isto?

Clorindo Testa: Referente a isso da frescura, muitos anos atrás havia uma revista que se chamava "La Codorniz", da qual eu fazia parte e uma vez me suspenderam dela porque tinha feito um comentário tomando como referência a metereologia, no qual dizia que estávamos governados por um fresco que nos tinha a todos muito incomodados... Mas em relação com o tema da ordem de uma composição, eu vou organizando as coisas em função do que me tem sido solicitado e confrontando-as com o que o lugar me permite e me condiciona (pré-existências naturais ou construídas, por exemplo) sempre numa tensão entre o que desejo e o que existe; cria-se como que um "problema produtivo" onde intenção e pré-existências vão estabelecendo um contraponto. O projeto vai se "encaixando" entre o existente e passa a formar parte da realidade. Mas tudo é sempre muito ordenado; por exemplo, no Banco de Londres um dos fatores exigidos, uma das pautas para que pudesse ser escolhido um projeto, era que à distância a ser percorrida pelos funcionários até as circulações fosse a menor possível. No projeto elaborado havia uma ordem bem clara e forte nesse sentido, que foi um dos fatores determinantes para que ganhássemos o concurso. O traçado regulador das fachadas corresponde também com uma modulação precisa dos apoios que constituem os grandes pórticos que nascem da estrutura do teto. A forma das colunas e o diafragma das fachadas se imbricam constituindo uma coisa só, o que reforça a ordem e a unidade do conjunto. No caso da Biblioteca Nacional, os quatro grandes pilares em forma de tubos que suportam o corpo do edifício alojam as escadas e elevadores, permitindo configurar um grande espaço coberto aberto como uma espécie de praça pública que constitui o acesso à Biblioteca. No volume superior se encontram as funções administrativas, as salas de exposições, o foyer do auditório, a cafetería e as salas de leitura com vista sobre a paisagem. Os livros que são a parte pesada do programa, estão no subsolo. Desta forma, a ordem funcional se manifesta na composição do edifício.

JMJ: A cor tem uma presença muito forte na sua arquitetura. Para os Maias era coisa dos Deuses e portanto, algo transcendente. Como funciona isso para o senhor, como se relaciona com a sua busca plástica?

CT: Desde o início a gente já sabe como vai ser isso; faz parte do processo projetual e de alguma maneira tem a ver com algo genético.

CT: A gente pensa numa cor real. A cor é uma coisa genética, vem com você; o homem tem a cor. E a arquitetura é um instinto. As crianças desenham as casas todas iguais; os homens das cavernas também desenhavam todos de maneira semelhante. Depois, as crianças deixam de desenhar, mas algumas continuam porque tem uma certa condição que outras não tem. Acredito que a habilidade com a cor também é genética. Mas o uso da cor vai mudando dentro de uma determinada cultura e acontece que a partir de um dado momento algumas questões não interessam mais. A arquitetura moderna na Argentina não estava interessada na cor, mas agora passa a se interessar.

JMJ: Em relação às referências para a arquitetura, no sentido do corpo como modelo de capacidade de adaptação e resposta a soluções diversas (não como medida de proporção como era para Le Corbusier, por exemplo), como referência de inteligência, como organismo altamente sensível capaz de dar respostas a múltiplas solicitações; como você acha que a arquitetura pode ser pensada nessa via, inclusive introduzindo a questão do tempo?

CT: Na medida em que mudem as coisas com as quais você pode construir, a arquitetura poderá ser mais sensível e maleável. Hoje, ainda continuamos construindo como há mil anos atrás (com pedra, com tijolo) mas em outras áreas (o desenho de uma Ferrari, por exemplo) as coisas mudaram muito. Na nossa área não. Uma casa atual não se diferencia muito construtivamente de uma casa romana. A indústria da construção não está acompanhando ainda, não está no nível do que as coisas avançam em setores mais dinâmicos, e na maneira de fazer as coisas em nossa área de atuação. Um edifício continua durando 70, 80, 100 anos enquanto um carro ou um avião duram de 5 a 10 anos.

JMJ: Qual é sua visão de cidade hoje... por exemplo, em relação com Buenos Aires?

CT: Eu acho que as cidades são como as pessoas, vão crescendo. O mais que se pode fazer é tratar de arrumá-las um pouco. Ordenar os acessos, as áreas residenciais, as áreas que não são residências (comércios, serviços, etc.) porque, além disso, são atividades naturais, ou seja, os negócios se juntam e se distribuem por vários setores da cidade, mesmo que agora se tenham mais complicações pela escala, mesmo que as coisas tenham ficado mais complexas. Mas as pessoas continuam preferindo estar umas ao lado das outras, estar todas juntas, ter a possibilidade de se encontrarem em espaços de qualidade. È isso que devemos pensar e favorecer com as nossas intervenções.

JMJ: Mesmo que existam algumas vantagens ao se distanciar do centro, como víamos hoje no processo que se está dando aqui em Buenos Aires, em Vicente Lopez por exemplo, onde se instalam sedes de empresas na margem da área nova ganha mediante aterros sobre o rio da Prata, e que alguém me dizia, "os yuppies estão vindo para cá". (Clorindo: e não só os yuppies); é um movimento que tem a ver com a qualidade do lugar por estar localizado às margens do rio e do verde, pela existência dos clubes, porque não tem engarrafamentos e porque é um lugar atraente. Mas se a tecnologia permite esta dispersão (poder estar comunicado através das redes informáticas, por exemplo) está também o social que condiciona...

CT: Eu acho que os empregados e os funcionários, as pessoas que trabalham, em geral preferem se encontrar com os outros. Os que trabalham em lojas são amigos dos que compram nessas mesmas lojas e vivem na mesma área. Saem à rua e se encontram. E geralmente acontece que os pintores são amigos dos pintores, os arquitetos dos arquitetos e freqüentam os mesmos lugares da cidade. Desta forma, devemos evitar o isolamento, evitar a formação de guetos.

JMJ: No livro que Manuel Cuadra fez sobre sua obra, da NAi Publishers, editado por Kristin Feireiss em 2000, "Clorindo Testa Architects" e também na excelente publicação da revista Summa+Libros, da Donn S.A., editada por Fernando Diez, "Clorindo Testa", de 1999, são comentadas as relações entre vida pública, tecido urbano e arquitetura. Para o senhor, de que forma a arquitetura pode contribuir para facilitar as relações da vida pública, ou acolher, ou provocar, ou contribuir para fazê-la mais amistosa?

CT: É claro que a arquitetura condiciona e favorece, no sentido que quando os projetos estão bem, possibilitam esse tipo de relações. Da mesma maneira que uma casa pode ser melhor que outra e te dar mais opções e permitir viver melhor também; o mesmo com os edifícios de escritórios. A arquitetura em sua configuração urbana deve contribuir para favorecer as relações sociais, a conexão do diverso; permitir que os diferentes usos mantenham uma continuidade e possibilitem uma sensação de pertença, de fazer parte de algo maior.

JMJ: Em relação com isso também, me ocorre pensar que, por exemplo, em Buenos Aires ou em qualquer outra cidade, Rosário, Córdoba, etc, existe um valor da vida pública, do estar fora e da transparência entre o público e o privado, que é muito próprio da cultura Argentina. Eu me lembro da sensação, quando em Rosário você vai caminhando pela calçada e vai vendo os bares, que tem muito "clima", e você vai passando pela calçada, sempre a pé, porque no centro pode-se caminhar, então você vê, olha quem está, vê se estão seus amigos, desde fora, desde o público vendo o privado. E isso me faz pensar em Borges quando contava que no verão as pessoas colocavam as cadeiras na calçada e saiam para conversar, e que então quem passava via o corredor e o pátio iluminados, com essa transparência entre o público e o privado, sem uma ruptura. Isso é o melhor da Argentina neste plano (e não há crise que o elimine, felizmente). Então, uma das questões que interessa pensar é como se pode fazer com que parte das cidades seja, ou volte a ser, ou não perca a sua "caminhabilidade", sua condição de espaço público integrador na escala do pedestre. Comentando os edifícios da Universidade que estão construindo em San Luis, o senhor dizia que é assim como isso funciona, nesse sentido de buscar que as partes se conectem, que as pessoas caminhem e se encontrem na cidade.

CT: Nesse lugar (em San Luis) estão construindo agora uma parte da urbanização; tem cinco edifícios com atelier, depois tem um centro de estudantes com bares, está o centro de artes, estão as residências, os equipamentos desportivos, e está também a praça e a galeria que são como uma cruz onde se localiza a reitoria, com a biblioteca e o auditório, e tem uma coisa como uma incubadora que vai buscar favorecer o surgimento de empresas. Então o edifício foi todo pensado como uma espécie de célula urbana onde suas diversas partes configuram diferentes opções de atividades e de percursos, com seus também diferentes pontos de atração e convivência. É um edifício que busca contribuir para fazer cidade.

JMJ: A rampa sempre foi um importante elemento de expressão tanto em relação com o objeto arquitetônico quanto com o espaço urbano... É um elemento que sempre permite fazer um gesto em contraponto e que você utiliza muito em suas composições; é um conector que permite uma passagem, que leva do público ao privado e do exterior ao interior. Além disso, é um objeto manipulável no sentido da expressão, permite um gesto de caráter paisagístico...

CT: É, deixa tudo como mais... lindo. Agora estamos projetando uma casa para fora da cidade, com os quartos embaixo e a sala de estar emcima para aproveitar a vista da paisagem e tem um terraço que permite ver mais longe ainda essa paisagem. A casa tem rampa porque é para um deficiente físico e neste caso a rampa se expressa no objeto, é uma parte muito importante dele.

JMJ: Como o senhor me comentava em Santo Domingo, as viagens e os desenhos de viagem cumpriram um papel muito importante na sua vida de pintor e arquiteto. Como foi isso?

CT: Comecei desenhando paisagens por puro prazer de desenhar e em 1949 quando estava na Europa com uma bolsa da Universidade para ficar por 3 meses na Itália, acabei ficando por dois anos percorrendo outros países e sempre desenhando. Durante esse período um dia conheci Frans van Riel em Roma, quem se entusiasmou com meus desenhos e me convidou para apresenta-los numa galeria que ele tinha em Buenos Aires. A exposição foi em 1952 alguns meses depois do meu regresso da viagem, e eu apresentava paisagens com pontes, máquinas e estações ferroviárias. No ano seguinte me convidaram de novo e assim iniciei um trabalho que realizo até hoje, acompanhando a arquitetura. Desde aquele momento, pintura e arquitetura estão sempre juntos. Desde pequeno gostava de desenhar; desenhei muitos modelos de barcos e aviões. Mas os dois anos que passei na Itália, viajando e desenhando, absorvendo tudo que via, foram fundamentais na minha formação. Eu gosto de desenhar e é algo que me diverte; eu transmito as minhas idéias através dos croquis.

JMJ: O senhor tem alguma obra preferida?

CT: Sempre nos interessam todas, mas o Banco de Londres, a Biblioteca Nacional e a Sede do Governo da Pampa, são obras importantes.

Outros: No concurso de Córdoba do ano passado sua solução para o edifício me pareceu brilhante. Encantou-me o tema de como você re-elaborou a fita, onde, por programa, exigia-se que fosse um edifício, mas com a fita você consegue articular com as outras peças... Além disso, era um dos poucos projetos que tinha uma proposta de relação com o entorno, porque muitos plantavam um objeto isolado.

CT: Era um edifício-fita com os núcleos de circulação com escadas e elevadores bastante próximos um dos outros. Porque no programa pediam que fossem espaços, locais fáceis de transformar, pois não se conheciam as necessidades futuras de aumento ou diminuição (às vezes é necessário aumentar, mas outras vezes pode ser necessário diminuir). Depois havia uma rampa para público e a Casa de Governo estava em frente, com a planta baixa livre, e estavam os acessos às circulações verticais; podia-se subir, ver a paisagem e descer ao terreno natural. O edifício funcionava como passeio de fim de semana para a população do entorno; rampa para público, planta baixa livre para circulação dos visitantes, constituindo um passeio público.

JMJ: Como lhe parece que as relações sociais (familiares ou no comportamento dos indivíduos na cidade) funcionam para pensar os espaços coletivos e individuais? E como tema de investigação em relação com a experiência docente, por exemplo?

CT: A docência me divertia quando o aluno era bom, senão era muito chato. Quando o aluno é bom você se diverte confabulando com ele, pondo a imaginação para trabalhar intensamente, repensando os espaços tanto em relação ao uso dos locais privados como dos ambientes públicos. A relação com um bom aluno é um estímulo à criatividade.

Jorge Mario Jáuregui